De soslaio, para o meu professor de Português

De "soslaio", para o meu professor de Português
(uma saudade e uma vontade imensa de ser sua aluna de novo).

Tive um professor de português daqueles inesquecíveis. Daqueles missionários que vêm à vida pra tentar, muitas vezes em vão, plantar um pouco de algo que possa mudar pra melhor a vida de alguém, algo no qual ele acredita tanto que a gente passa a acreditar também e, por isso, a gente não se esquece nunca. Sim, ele não era daqueles professores que estavam ali pra ensinar Português a um bando de adolescentes, ele estava pra levar nossa língua, nossa literatura, nossa arte, nossa gramática, ele tava como quem tá pra pregar, só que de um jeito massa.

Apaixonado por Maria Bethânia e por palavras pouco usuais, as suas aulas eram densas, divertidas e, muitas vezes tensas.  

Lembro de ter começado o ano com excelente expectativa em relação a ele, pois ele havia dado aula para o meu irmão no ano anterior e ele, meu irmão, sempre trazia pra casa as histórias mais hilárias e inteligentes do colégio depois das aulas do tal professor, cujo nome não vou falar pra preservá-lo. Ah! E o tal professor era, e ainda é, marido da diretora do colégio (já explico porque essa informação tem relevância).

Não sei o que diabos aconteceu com a gente, comigo e com o professor, mas nosso santo não bateu de cara. Eu, uma pirralha, fedelha, atrevida, questionadora, curiosa e interessada – e tenho certeza de que ele gostava disso, porque professor adora aluno que, de alguma forma se interessa pela aula – briguei com ele. Discutia, me alterava – e ele junto – eu levantava a voz e ele também e eu não tinha medo (mesmo ele sendo marido da diretora – aqui, tem um emoji do macaquinho com a mão nos olhos rsrsr). 

Sei lá o que me deu lá pelos meus 14 anos de idade que eu era uma leoa. Certo dia eu saí da sala rumo à coordenação para falar dele e ele veio atrás, talvez com medo desta petulante juvenil. Meu irmão e minha mãe nem acreditavam como era possível eu me desentender tanto com alguém que era tão especial ( digo especial, porque ele era legal e duro, inteligentíssimo e duro, era divertido, engraçado, maravilhoso!!! mas me tirava do sério). Saudades desse tempo.

Depois, eu e ele fizemos as pazes e, no segundo bimestre do ano, nós nos dávamos maravilhosamente bem e as aulas, pra mim, eram uma  delícia. Ele cantava Fera Ferida, ele tinha as expressões mais eruditas e irônicas do português e ele amava a palavra “Soslaio” que uso frequentemente em meus textos e toda santa vez me lembro dele e só uso a palavra por causa dele. E toda vez que eu ouço Fera Ferida eu também me lembro dele e eu tenho um carinho imenso por ele não sei nem por quê. 

Hoje, tentando entender o que me faz ter esse carinho, carinho desses que a gente sente por professores que marcaram a nossa vida, me peguei emocionada. São pessoas que, com seu trabalho, nos deixaram não apenas o conhecimento sobre a matéria em si, mas um autoconhecimento, algo de nós mesmxs. Algo meio difuso, meio confuso, mas muito relevante para o que nos tornamos. 

Eu conto nos dedos de uma mão quem são essas pessoas: Ana, Daniel, Flávia, Mariana… E ele, que certamente não tem ideia desse meu sentimento, até porque eu não devo fazer a menor diferença na vida dele. Mas o que me importa é a que ele fez na minha. 

Daí, toda vez que eu vejo alguma tentativa de cercear, censurar, dificultar, desvalorizar, pagar pouco, ameaçar um professor, eu me lembro desses meus que guardo feito tesouro, tentando por tudo que a memória não apague o que os fizeram permanecer comigo vida afora, mesmo depois de eu ter saído do banco de aprendiz – do qual a gente nunca deveria sair de fato – e ter passado a encarar de frente o que é a vida adulta.  

De certa forma, eles me conduziram até aqui. Hoje eu escrevo e as palavras e visceralidade do professor de português xodó me acompanham e se escrevem em meus textos. As aulas de história do Daniel não me deixam sair da cabeça os horrores da Segunda Guerra Mundial e me alertam pro perigo desse pinimba entre EUA e Irã. As aulas da Flávia me reviraram do avesso quanto à minha condição de privilegiada, me enxerguei no outro, me enxerguei de volta e me vi absolutamente outra, tendo de ser outra, sem nunca mais poder ignorar quem eu li, de quem eu ouvi falar naquelas seis horas semanais.

Mas por que diabos a Luciana resolveu falar dos professores dela, hoje? O que a gente tem a ver com isso?

Nada, gente, eu sei, mas é porque hoje eu escrevi a palavra “soslaio” e me lembrei dele. E me lembrei de um tempo onde o entorno me parecia bem mais calmo, as minhas certezas mais sólidas, uma sensação de segurança ainda que eu jamais a tenha tido plenamente, já que minha alma parece viver um monte de vidas nesta encarnação. 

Sobre o professor, brigamos no terceiro bimestre e juro que não me lembro se saímos daquele ano difícil nos amando ou nos odiando, mas não importa. Rancor foi coisa que nunca guardei, guardo gratidão, guardo respeito, guardo o carinho e guardo a palavra “soslaio” que cai bem em várias colocações literárias e metafóricas. Hoje, Maria Bethânia é minha musa e o português a minha arma.

Obrigada, professor.

Com amor, da sua aluna rebelde, mas sempre bem intencionada,

Luciana Targino

Você também pode gostar

Deixe aqui o seu comentário

3 respostas

  1. SOS (salvem nossas almas)
    SOSLAIO
    Parece que o texto salvou algumas almas hoje!
    Conexões fantásticas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.