Em 2015, assim que saiu o livro de Marcelo Rubens Paiva “Ainda estou aqui”, corri para ler. Adoro a escrita autobiográfica do Paiva. Devorei “Feliz ano velho” quando li ainda bem nova, assim como devorei o “Ainda estou aqui”. É lógico que quando o aclamado filme de Walter Moreira Salles saiu nas telonas da cidade, corri pra ver.
O filme é triste e a gente já sabe o final: Rubens Paiva é preso, torturado e morto pela ditadura militar brasileira em 1971. Morreu de tanto ser torturado, dois dias depois de chegar na prisão. Morreu gritando o seu nome “meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva”.
O filme dói porque não se trata apenas dessa morte, que já é dolorida demais, mas ele dói pela destruição de uma família. Cinco filhos, um casal que se amava e se curtia, um cachorro, uma empregada, uma casa no Rio de Janeiro perto da praia. A praia e a rua eram o quintal da casa, as crianças iam e vinham, os amigos vinham e ficavam e a vida não podia ser melhor do que aquela.
O filme conta, sobretudo, a história de uma destruição. Do quanto regimes autoritários destroem: vidas famílias, projetos, sonhos… Em um certo dia, um fatídico e injusto dia, o cenário festivo da família Paiva foi destruído. O pai foi levado para “prestar esclarecimentos” na delegacia e de lá não voltou nunca mais. E nunca mais apareceu, nem seu corpo e nem seus ossos. Sumiu.
A dor de lidar com um sumiço, com a eterna esperança da volta e com a demorada espera de cada dia tentando alimentar que até o final do dia ele chegará, ele vai voltar, essa dor é incomensurável!
Lembro-me de que quando li o livro, tive a sensação de estar lendo algo sobre meu passado, sobre uma história muito difícil, sofrida, mas passada. Nascida em 1981, não senti absolutamente nada do horror da ditadura militar que nos assolou por vinte anos. Esse assunto também não vigorou na minha casa. Nasci num Brasil que já se encaminhava para reestabelecer a sua democracia e cresci livremente nesse sistema democrático.
Contudo, se há dez anos a gente podia dizer que a ditadura era um tema distante, que tinha acontecido láaaaa atrás e ficado por lá, atualmente a gente não pode dizer o mesmo. É aterrorizante constatar que a memória da história brasileira seja ela toda uma amnésia e que as pessoas simplesmente não se lembrem ou nunca nem sequer tenham ouvido falar do que foi o período entre 1964 a 1989 no país.
Durante um bom tempo pensei que o problema era somente do Brasil, que concedia anistia total e irrestrita a torturadores e que não nos ensinava na escola o que havia acontecido em nossa história recente. Sempre ouvi falar de que na Argentina esse tema era tão explícito, falado e debatido que não havia cristão que pudesse contestar os horrores da ditadura dos hermanos.
Eis que surge o Millei. Eis que nos Estados Unidos, que nunca nem teve uma ditadura, surge Donald Trump e, claro, no Brasil surge Bolsonaro evocando brilhante Ustra – dos maiores torturadores que a nossa ditadura já teve.
Entristeço-me ao perceber que ditaduras podem ser demandadas pela população. Que as pessoas querem punição severa para quem pensa contra, age contra, se porta contra. Preocupa-me perceber a democracia tão frágil, tão ameaçada e fico confusa sem saber direito por onde começar a tentar reverter essa queda de braço insana, quando o conceito de liberdade é subvertido e passa a ser justamente a privação. Quando o nome de Deus é usado para abençoar iguais e a pátria virou sinônimo de poucos.
É tudo estranho. Um remake de um filme que eu só via passar nas telonas ou nas páginas de meus livros. Como em uma ficção científica, o monstro pula pra fora da tela e parece querer nos engolir novamente.
Mas eu, eu sigo escrevendo e espero poder continuar. E você, vá assistir “Ainda estou aqui” enquanto ele está em cartaz.
Boa semana!