Sobre acordos e cobranças

Sentada ao meu lado na mesa da padaria – sim, o melhor lugar para um escritor estar é onde ele possa captar o humano e, ao mesmo tempo, estar a sós para pensar sobre o que escuta por aí nas linhas e entrelinhas das pessoas.

Pois bem, sentada ao meu lado, a mulher diz que brigara com o noivo na noite de ontem. Motivo: ele tirou uma foto em uma viagem solo sem aliança. Como diria Rita Lee: Que flagra, que flagra, que flagra!

Ela continua dizendo que ele estava numa balada com um novo amigo em plena madrugada, em pleno São Francisco nos Estados Unidos. Como ela descobriu? Ora, fez uma chamada de vídeo. Minha gente, privacidade hoje em dia é artigo de luxo, viu:! e esse meu coração analógico jamais teria uma ideia dessas. Dica anotada! Quer dizer, nem sei se isso é bom.

Fiquei pensando sobre um tema o qual anda me acometendo demais as ideias nos últimos anos: L I B E R D A D E.

Até que ponto o outro é nosso quando num acordo entre duas pessoas que desejaram se amar mutuamente? Até que ponto podemos ter a posse, a exclusividade de um ser humano que não nasceu tangido com nosso carimbo, mas que, em algum momento da vida, escolheu estar do nosso lado e nós do lado dele?

Continuo. Até que ponto podemos controlar o desejo do outro, a vontade de alguém, o interesse, os planos, os projetos de vida, os projetos de um sábado à tarde que seja? Até onde vai esse acordo? O que é fidelidade? Sobre o que temos direito de cobrar?

Prossigo – ainda que sem resposta alguma par as questões anteriores. Por que precisamos da posse? Por que nos desesperamos pela exclusividade? Será que castrando alguém a gente não termina por minar o que àquela pessoa tem de seu e terminamos por tentar transformar este alguém numa continuação esquisita nossa? Isso me parece fadado ao fracasso, não? Deus me livre de alguém igual a mim, ainda mais uma cópia mal feita minha, já que igual, igual, ninguém vai ficar.

O tema é pra lá de polêmico e, se a gente for se aprofundar, vamos entrar em questões religiosas e políticas, o que não caberia em uma crônica já que filósofos, antropólogos e sociólogos tentaram e tentam, em vão, dar um destino ao que, no final das contas, é sobre tal amor, ou pelo menos, uma tentativa de amar.

Quando falo de l i b e r d a d e, não falo apenas da ideia de “traição”, porque aí o bicho pega meeeeeesmo, mas falo de ser livre para ir e vir dentro de uma história que se pretende eterna. O resto da vida é tempo demais pra se sentir preso.

Penso que o problema está quando ligamos intimamente amor à exclusividade de todos os interesses e desejos e isso nos leva à posse. Eu mesma, como já disse, não tenho, obviamente, as repostas  e faço questão de reiterar aqui pra não acharem que estou fazendo uma apologia à libertinagem. Mas acredito piamente que a gente só se constrói e se transforma a partir das dúvidas.

Penso também que sustentamos nosso amor por alguém em cima de uma estrutura pantanosa, escorregadia, porque é isso que somos: seres não lineares, pessoas cheias de camadas desconhecidas inclusive por nós mesmas. Se a gente muitas vezes não sabe direito o que quer, como querer ter a posse de alguém se não temos a “competência” para nos conter por inteiro?

Sinceramente, alguém que me diga ter a clareza do que veio fazer nessa vida durante 100% da jornada adulta pode me atirar a primeira pedra, porque eu duvido que tenha. Duvido que a cabeça não divague, que a pulguinha não se aloje detrás da orelha “vezenquando”. Duvido que não pense como seria, como poderia ter sido, como dar um jeitinho pra que seja. Nem que seja só em pensamento, duvido que não.

Aqui do meu lado, a moça que flagrou o noivo sem aliança do lado de lá da América come tranquilamente um croissant com geleia. Faz ela muito bem, pois eu não sei qual é o caminho, entre acordos e cobranças, não conheço os vereditos, mas certamente, o importante é que seja doce. A vida, que ela seja doce. Esse que é o acordo, essa que deve ser a (auto) cobrança.

Uma resposta

  1. Nesta vc se superou! Das que li (as do menu principal) foi a mais encorpada, kkk. (A segunda melhor foi Agora é que sou Eu).
    Destaca-se “…filósofos, antropólogos e sociólogos tentaram e tentam, em vão…”
    e
    “…sustentamos nosso amor por alguém em cima de uma estrutura pantanosa,…”
    Pior é que nesse tema tem mais coisas.
    Vamos aguardar.

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