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Eu preciso acordar no dia seguinte que ele me deixou

Eu preciso acordar. Não sei como. Anos e anos de aprendizado e não se sabe como acordar no dia seguinte em que alguém vai embora.

O corpo feito palimpsesto, um sobreposto ao outro contando a mesma história sob pontos de vista distintos. Não se sabe quando um começa, quando o outro suspira e quando ambos botam um ponto final.

Eu preciso acordar. Preciso encarar o peso de um corpo a levantar-se como se carregasse dois. O peso do corpo e as arrobas da saudade que é tão densa quanto tudo do outro que ficou. A temperatura do outro, o bom dia, a risada e a mania de roçar os pés contra os seus antes de sair debaixo das cobertas.

Mas eu preciso acordar. Olhar para um dia de inúmeras vinte e quatro horas que insistem em não findar. Duram o tempo da tortura, duram o tempo do nunca mais, duram a infinidade de um para sempre arrancado feito morte trágica.

Eu preciso acordar. E dormir e acordar e dormir e acordar até que a alma entenda que dali pra frente terá a ausência como companhia. A não presença em saudade é tão viva quanto o ser em si. Metonímia em seu sentido mais puro, àquele que parte do nada para representar tudo. O outro é tudo… que importa.

Eu preciso acordar. Fazer a fome voltar, a força do caminhar guiar, há um mundo inteiro a espera pra se desbravar. Começar de novo com o olhar curioso de uma criança que, aos poucos, vai enxergando cores, formas, coisas e gente.

Eu preciso acordar. Encarar o sozinha que antes era dividido, encarar os cenários de um teatro com apenas um personagem agora. Encarar lembranças, cheiros, lampejos e músicas que, enquanto andamos em calçadas de um centro de qualquer cidade, vêm sussurrar as trilhas sonoras de nossas vidas, nos mostrando de um passado tão doído quanto bom, tão triste quanto vivo, e, agora, já ido.

Eu preciso acordar. Enganando a inércia, camuflando a expectativa da volta, negando a espera. Espera que se acomoda de alguma forma, num canto só nosso que não se conta a ninguém. Espera sem tempo, sem prazo. Espera que vira parte de nós, como balão de oxigênio. Precisamos dela pra não sucumbir.

Eu preciso acordar no dia seguinte em que ele me deixou.

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