Sentindo na pele

Tenho medo de sentir na pele.

Tenho medo de uma doença grave, de erro médico, medo de perder pessoas que eu amo…

Quando vê as notícias em telejornais, jornais, a gente pensa: “Que absurdo!”, mas segue. Vai ao supermercado, vai à academia, vai à praia, porque, enfim, não foi com a gente, ninguém “tem nada  a ver com isso”.

Pois bem, só que nos últimos tempos as coisas deram pra acontecer comigo. Tenho sentido na pele o que tantos e tantos sentem e me comovia, mas eu não tinha ideia do que era.

Sabe quando um pessoa pobre vem na TV dizer que não conseguiu pegar o ônibus pra voltar pra casa depois de um dia inteiro de trabalho e você, do conforto do seu lar, vê aquilo ali como quem assiste a uma novela? Pois eu senti na pele o que é não poder voltar pra casa porque não têm ônibus, porque a cidade parou, porque você corre risco de vida se tentar sair de onde está.

Sabe aqueles 80 tiros de fuzil que deveriam ter parado o país em revolta e ninguém da direita se manifestou nem pra se solidarizar? Pois é, eu só precisei de uma arma Calibre 38 mesmo apontada pra minha barriga pra ter um milésimo da noção do que deve ser a pessoa passar uma vida inteira sob ameaça, seja de ladrão, seja da polícia, seja de militar  (do dia em que escrevi esta crônica e não publiquei pra hoje, essa estatística piorou vertiginosamente). Mas jamais terei a dimensão real, pois tive a sorte de nascer branca e com dinheiro. Sorte, muita sorte.

Seguimos. Sabe aquele assunto tão polemizado ultimamente de que. durante um certo período no Brasil, as pessoas andavam falando de lado e olhando pro chão (obrigada, Chico, pela metáfora precisa)? Sabe quando diziam que você não podia escrever, assistir, falar e ser como queria, pois o governo vinha e te prendia, te torturava e te fazia calar? Pois bem, senti um tiquinho disso na pele também recentemente. E, como em todo regime de censura, eu tô com medo de entrar em detalhes, então vou me calar por aqui. De novo, escrevi esta crônica em Abril e não publiquei. De lá pra cá, a censura só piorou.

Pois é, agora, eu sinto na pele. Agora, está sendo comigo, agora, chegou bem aqui. E você virar estatística é ruim que só, dói, dá raiva, dá medo, revolta, angústia. Não é fácil, não cabem risos, nem piadas e nem deboche.

Lembro-me de já ter visto uma piadinha sem graça que dizia: Pobre vive dizendo que não tem nada e, quando tem enchente, diz que perdeu tudo.  Meu Deus! Até pra escrever essa frase acima me doeu e me deu vergonha. Fico impressionada com a coragem e a raça dessas pessoas que enfrentam tanto pra tentar ter uma vida com o mínimo de dignidade. E tem gente a acreditar que a pessoa quer viver do bolsa família. 

Viver do Bolsa família??? Desculpe, mas não dá nem pra tapar o buraco do dente.

Parece estranho o que eu vou dizer, mas, ter passado pelo que passei, de certa forma, tem me ensinado muita coisa. É como se a vida estivesse me dizendo assim: Tá querendo entender  o mundo? Tá querendo ajudar as pessoas? Tá querendo ser alguém que atue para melhorar não só a sua vida, mas a de alguém? Tá querendo ver de perto o que a vida inteira você, e outras – poucas – pessoas, quiseram passar longe? Pois toma!

Eu nunca fui alguém que pensou que “não tinha nada a ver com isso”. Sempre me meti, desde pequena, sempre me envolvi, sempre dei minha cara a bater. E já bati também, num colega muito mais forte do que a gente, ele tinha batido no meu primo. Bem louca, fui lá e enchi ele de tapa e murro. Ali, com uns 9 anos de idade, de certa forma, já me mostrava o que eu seria.

E, quando você resolve olhar pra fora, pro que não é umbigo, você pode ter certeza de que será apedrejada. Vai ser criticada por quem acha que deveria estar fazendo o mesmo, mas por medo, preguiça, ou simplesmente, por não saber como, não faz, fica quieto, prefere fingir que não está acontecendo. Tipo quando o presidente fala que não houve ditadura no Brasil e tem gente que acredita. Tpo quando o “zero 2” fala em AI-5 e tem gente que não se escandaliza. Tipo isso.

O preço é alto. Liberdade não é dada, ela é conquistada.

Dia desses me perguntaram assim: Mas hoje você é feminista? Respondi: Completamente.

Pasmem, para muitas mulheres o feminismo ainda é um tabu, uma ameça. Imagino que elas devam pensar que sairei nua na rua reivindicando meu direito de não ser um corpo sexualizado pelo patriarcado, ou que vou deixar os pelos do meu sovaco crescerem, que vou odiar os homens… Quando a gente não se informa, a nossa opinião fica tão rala, tão vaga…

Respondo que não preciso aderir a todas as manifestações para ser uma mulher que apoia outras mulheres e que, concordando ou não, não sou a palmatória do mundo pra achar que o meu ponto de vista vai pautar o que é certo e errado. Acho que cada um luta com a força e com a coragem que tem.

Nem sei se, depois de sentir na pele, eu fiquei mais corajosa, ou isso me acovardou de certa forma. Fiquei com medo, certamente, mas talvez mais forte. Talvez eu vá embora, talvez não, talvez me matem, torço pra que não…

Sigo sentindo na pele.

 

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