Vida anestesiada: Morfina ou LSD?

“Vida anestesiada”.

Acabei de ouvir essa frase na novela. Não, nem adianta você me perguntar se foi na das seis, das sete, ou das oito, porque foi em uma novela que eu resolvi maratonar depois de anos. “A vida da gente”, caso você se interesse.

O personagem é um alcoólatra em recuperação que está revendo o passado e pedindo desculpas a quem ele causou mal. Difícil, né? A sangue frio você ter de lidar com a dolorosa tarefa de ser você mesma e se relacionar com o mundo sem rota de fuga, sem subterfúgios, sem anestesia, sem nada. Puxado.

O que mais tem me inquietados no contemporâneo – e me feito sofrer também – é estar tentando me “desanestesiar” à medida em que eu percebo que muita, mas muita gente, se mantém fixa a uma ideia de vida, um modelo de manutenção e reprodução de padrões e comportamentos que são de uma monotonia ao mesmo tempo que são cruéis.

Fico me perguntando como é que pode, depois de todas as manifestações, de todas as mobilizações recentes pela liberdade de ser o que se é, com as taxas estarrecedoras de criminalidade contra LGBTs as pessoas ainda precisam se refugiar em grupos religiosos que defendem a manutenção da família (lê-se: tradicional família, com mãe, pai, filhos).

Também me questiono como adultos podem ser tão perversos na interpretação/julgamento do discurso de uma menina – Greta – de apenas 16 anos, sem considerar a coragem, a potência, a realização de algo tão importante por alguém tão jovem.

Fico entristecida com o deboche de tantos com o caso Marielle, a ponto de fazerem piada com a sua morte. O assassinato da Ágata, do Kauã, do Kauê e de outros tantos que diuturnamente são interrompidos e as partes (des) interessadas simplesmente se calarem, se omitirem e pior, justificarem.

Mas a frase dita na minha novela – veja, num mundo insensível, até a novela é fonte de afeto – me ajudou a esclarecer um pouco mais o que pode explicar tamanha falta de empatia: é a anestesia.

Percebo que a maioria das pessoas busca, de alguma forma, passar por essa vida sem sentir tanto, sem se aprofundar tanto. Isso não significa que sejam más pessoas, elas podem ser ótimas mães, amigas, irmãs, pais, etc. Mas elas não vão se aprofundar em grandes questões, não vão se questionar, muito menos questionar o que nos é repassado como tradição e costume. Elas não pretendem sair da bolha, romper com essa casca que “garante” que tudo vai ficar bem. Buscam uma vida assim, meio anestesiada, meio que o mundo não me diz respeito e nem pensa em economizar no canudinho, porque, afinal, quem tem de se haver com o meio ambiente são os ambientalistas, porque a poluição dos mares e rios não diz respeito a ela e, muito menos, se os negros da favela estão morrendo.

É uma gente que preferiu fechar os olhos a entender que vivemos em sociedade de forma holística – aff, que termo o ó, mas é. Não entendem que, se àquela criança não vai à escola porque tem tiroteio perto de onde ela mora, de certa forma, isso não muda porque a gente não vota em pessoas que estão preocupadas com que essa realidade mude, ou ainda, que a sociedade, no caso, a gente não se manifesta de nenhuma forma pra mudar isso.

E sabe por que não entendem e não fazem o menor esforço pra entender? Porque dói, porque dói pra caramba enxergar a vida sem anestesia, enxergar o mundo entendendo que a nossa responsabilidade aqui envolve algo além de um apartamento no 18° andar na área nobre de uma cidade qualquer. Quem é que vai pegar sol na cara e se encher de mancha pra sair prestando atenção na quantidade de crianças fazendo malabarismo no sinal pra sustentar a família?

Melhor é dizer que ela tá ali porque o pai é um explorador – e é também – porque “esse povo” não quer trabalho sério – lê-se: sem carteira assinada e que ainda dorme no emprego. Melhor achar que todo preto é bandido e que bandido bom é bandido morto. Melhor ainda é votar em quem corrobora com tudo isso e mantém essa anestesia coletiva, livrando “as pessoas de bem” do grande mal da vida: parar pra pensar no outro.

Às vezes minha tristeza aumenta quando penso que algumas pessoas podem entender isso tudo e preferirem manter tudo como está, com medo de que não haja ninguém pra limpar seu banheiro por um salário mínimo sem CLT.

Às vezes, é melhor mesmo a gente ficar anestesiada.

Morfina ou LSD? 

Achei esse coração cheio de vida em meio ao gelo aqui.

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