Algumas células do coração.

as células do coração

Estou lendo Véspera de Carla Madeira. Escolhi esse romance que, havia muito, estava curiosa, pois minha tia havia me dito que era ainda melhor do que Tudo é Rio, também de Madeira, e eu tinha adorado o primeiro.

Estou com uma fixação pelo livro, os personagens Caim, Abel e Paulo Parede não saem da minha cabeça durante o dia, ficam ali na cabeceira me chamando para a leitura da noite. Estou na metade e já recomendo.

Mas não vim aqui acabar com a graça do livro para você que ainda não leu. Publicitária, Carla Madeira parece usar das frases de efeito também na literatura e nos presenteia com criatividade e sensibilidade ao mesmo tempo, unindo perfeitamente as duas profissões. Nada de pieguice, mas frases que nos sacodem por dentro.

Uma ficou me martelando a cabeça todo o final de semana. Muito influenciada pelas manifestações de ódio e violência que todo santo dia nos enchem as redes sociais e as manchetes dos jornais, essa frase que dá título a esta crônica, me marcou (não vou colocar entre aspas porque não sei exatamente como está escrita no livro que deixei em casa, mas o sentido é esse): A diferença entre a justiça e a perda da razão são algumas células do coração.

É aquele átimo de segundo entre o controle e a perda dele frente a uma raiva tremenda, frente a um estresse gigante, entre a boca fechada e a palavra mal dita (e maldita), entre a razão e o arrependimento para sempre. Entre o antes e o vacilo com sequelas irrecuperáveis, entre o “estava tudo bem” e o tiro que matou a ex-mulher, o ex-amigo, o ex-marido.

É uma mensagem que vai do coração ao cérebro e é bruscamente interrompida pelo impulso, pelo barulho da nossa parte pouco iluminada que esconde nela tantos recalques, tantos silenciamentos que só a gente sabe o quanto nos custa mantê-los calados e sob controle. Aí vem o tal gatilho e, antes mesmo que a gente possa lidar, a gente já age e, pá!, já era.

Gosto da metáfora do coração como um percurso, que recebe um comando aqui e, de célula em célula, leva até o outro lado as emoções que podem ser desastrosas. Como num telefone sem fio, uma célula falando com a outra, denunciando o dano, mandando um recado, uma fofoca e, quando chega no ouvido, ou sei lá onde que bate, transborda, derrama, desmantela, desorganiza tudo.

O caminho de volta, arrisco a dizer, é impossível. Não dá para desdizer, não dá para desfazer, não dá para ir voltando o fio pelas artérias de um coração que nem fio tem. As sinapses de retorno são menos eficazes. É como se pontes de queimassem entre uma célula e outra e a razão, quando se recobra de si, tenta, em vão, buscar caminhos que não mais.

Contudo, dia desses ouvi uma frase de uma amiga, quando lhe confessei um sentimento o qual não sabia direito nomear, um recomeço estranho, no que ela, muito sensível, me disse: agora, pelo menos, você terá uma possibilidade de criar outra história.

Eu, ainda que morra de medo, acredito muito naquele ditado que advoga: “não dá pra fazer o bolo sem quebrar os ovos”. Por vezes, só vai assim. É preciso que algo se quebre para que aquela água mal parada, que nem ia pra frente e nem pra trás, que ela possa encontrar um percurso, um riacho para escoar, um novo endereço para dar àquela relação. Como se as tais células do coração, quando têm chance, conseguem se reorganizar não mais em um caminho de volta, mas por outro caminho. Outras vias, outras veias, outras artérias, outras fretas.

E isso é bom. A sensação de recomeço partindo de onde não há mais nada a ser feito, é boa. Esperança o nome, né?

É o que eu desejo para as vítimas dos incêndio em Los Angeles, para as vítimas das chuvas em Minas Gerais e para o ano todinho da gente. Mas, sobretudo, eu desejo para a gente o instante antes, antes de tudo, antes da explosão. Desejo pra gente neste ano são só células boas no coração.

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