Madonna e você, tudo a ver.

madonna

Nunca foi pela voz mansa, pela docilidade, pela resiliência, pela compreensão, pela cabeça baixa, pelo sorriso amarelo, pela falta de denúncia, pela calma, pelo bom humor, pelo cuidado com o próximo, pela beleza, pelo recato, pelo espaço do lar, não é pelo amor incondicional aos filhos, não foi por ser uma excelente esposa, uma exímia dona de casa e nem por saber cozinhar, costurar e bordar, não foi por ser temente à Deus e seguir à risca a bíblia… não foi por nada disso que a mulher – que nós mulheres – conseguiu chegar até aqui.

Mas onde é esse “até aqui” onde nós mulheres chegamos sem que muitas vezes nem percebamos o caminho longo e tortuoso pelo qual muitas mulheres passaram para que nós pudéssemos hoje, pasme, vestir calças e não vestidos e saias, ter direto a votar – isso mesmo, mulheres eram consideradas inaptas e desimportantes nas escolhas do futuro dos países – ou ainda, para que não fosse justificado que nossos maridos nos matassem, caso sentissem que suas honras haviam sido feridas no casamento e isso ser um atenuante na pena por homicídio, hoje, feminicídio?

Se recuarmos ainda mais no tempo, esse “até aqui” envolve ainda o direto das mulheres frequentarem as escolas e, posteriormente, as universidades ou que as mulheres pudessem ter direito a trabalhar sem precisar da autorização de seus maridos (neste caso, faço uma ressalva, estamos falando das mulheres brancas, pois as negras sempre foram obrigadas a trabalhar desde bem novas, fossem como escravas, empregadas domésticas, babás, etc).

Fato é que, se galgamos espaços para nós, não foi por obedecermos normas, regras, leis ou por termos nos adequado aos padrões sociais definidos por uma sociedade liderada por homens, que, pasme de novo!, vai legislar em causa própria. E o que é bom para os homens? Volte ao primeiro parágrafo deste texto para saber.

Pois bem, eis que surge no universo e mais recentemente nas areias de Copacabana uma mulher chamada Madonna. Antes dela surgiram muitas outras que foram trazendo a gente até aqui e, depois dela, todas as que surgiram, certamente, foram influenciadas por ela para que pudéssemos chegar até aqui.

E o que é que a Madonna tem? Ela tem CORAGEM, coisa que muitas de nós não temos e, graças às que têm coragem como ela, conseguimos sair de uma opressão para galgarmos um espaço um pouco maior para a nossa liberdade ou arremedo de liberdade, pois sempre correremos o risco de um estupro, de uma demissão por gravidez ou de uma redução de salário por sermos, pasme novamente!, mulheres e, dada a esta condição genética, nós menstruarmos, engravidarmos e sermos consideradas menos capazes.

Acontece que para a Madonna ser a Madonna, para que ela pudesse ocupar o lugar que ela ocupou e vem ocupando e estar arrastando milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo por 40 anos ela teve que quebrar muitos tabus. Teve que romper com o falso moralismo da igreja católica que condena mulheres a serem eternamente Madalenas e se esquece que até Jesus perdoou a criatura. Igreja que exclui ainda hoje pessoas que resolveram amar livremente, se expressarem livremente ou mesmo se sentirem mais confortáveis no corpo em nasceram, seja tirando o pênis, colocando peitos. Nada disso a igreja aceita. Ela não aceita nem um casal gay que resolva adotar uma criança e tirá-la da solidão do abandono – se esse gesto não é amor incondicional eu não sei mais o que é. Ah, e vamos falar a verdade, a igreja que condena isso tudo é a mesma que passa pano para padres pedófilos.

Pois bem, Madonna bota o dedo e abre essa ferida aí criticando o que já deveria ter sido revisto há tempos. E, se a igreja não aceita, a comunidade Madonna aceita todas as comunidades e essas comunidades foram sacudir seus leques em Copacabana no último sábado.

Ah, Luciana, mas ela exagerou demais, ela choca muito!

Volte ao primeiro parágrafo deste texto e entenderás.

Toda revolução se dá por um levante – agora, valho-me do filósofo Didi-Huberman – e todo levante, toda mobilização que vise mudar algum sistema estruturado por séculos, como o que oprime nós mulheres, só consegue algum êxito se ele fizer com o que a população olhe pra ele, repare na existência dele e, ao ver uma força mobilizadora tão intensa, finalmente perceba que não poderá mais lutar contra essa força, é melhor acatá-la.

E é claro que há resistência, e é claro que as pessoas favorecidas por tal sistema não querem mudanças, é claro que vai haver gritos de horror e grunhidos de raiva, mas é essa mesma a ideia. Não dá para falar manso com quem sempre tentou nos calar.

E a Madonna grita. Ela grita pelo canto, pelo gesto, pela performance, pelo teatro e sua voz chega tão alto a ponto de causar um furor por conta de um show. Pessoas em polvorosa pelos homens nus, pela simulações sensuais, pelo beijo lésbico – que, sinceramente, não sei como alguém ainda se choca com isso -, por se vestir de preto com uma cruz na cabeça, mas, principalmente, por fazer tudo isso com uma naturalidade adquirida ao longo dos 40 anos de carreira e de luta. Quarenta anos de um estupro, de preconceitos, de ser chamada de bruxa, demônio, mas, mesmo assim, de ter escolhido continuar.

E mais, ser tudo isso e subir no palco com as filhas e o filho lindas e lindo que cantaram e dançaram com ela, pra ela, pra gente. A mãe carinhosa, amorosa e revolucionária. Isso é loucura demais para os tempos em que estamos vivendo.

Pois tenham a certeza de que, se não fosse por mulheres como ela, cada uma a seu tempo, cada uma com as suas ferramentas, nós não teríamos chegado até aqui, a gente não teria saído nem do lugar. A gente ainda estaria no primeiro parágrafo desse texto.

Pode criticar, claro que pode. Pode ficar surpresa, claro que também. Mas, não fosse o choque, não haveria revolução e não estaríamos aqui.

E eu te pergunto, você preferiria estar aqui, ou láaaaaaaaaaaa nos anos mil oitocentos e bolinha?

Express yourself, babe!

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