Saindo do aeroporto aqui no Rio de Janeiro, num Uber. Num trânsito, bastante engarrafado, homens negros desafiam carros e motos com pescoços e braços ocupados com sacos enormes de biscoito Globo. No céu, um sol beirando uns quarenta graus a fritar o asfalto. Nenhum sinal de sombra.
Não sou de conversar, mas devo ter puxado assunto porque o papo rodou até a Gávea.
Meu motorista, negro, me diz que tem duas filhas também negras e eu me pergunto ao mesmo tempo que o pergunto como é trabalhar a formação de meninas negras, sabendo que elas são as principais vítimas nesse país racista. Ele me diz que desde que elas têm um ano, ensina sobre o que é certo e o que é errado. Tive vontade de dizê-lo que errado são as coisas que provavelmente farão com elas, principalmente por racismo.
Ele mora na Baixada, e só Deus e quem é de lá pode saber o que é morar na Baixada. Nem me atrevo a especular, mas o que a gente vê na Tv não é muito animador, não.
Pela Zona Sul, onde trabalha e se sente mais seguro, está sujeito a outros tipos de violência, o que deve julgar ser menos pior: entre ser assaltado e sofrer racismo, ele optou pela segunda, já que tem que pagar as contas das duas pequenas que ele têm.
Aqui – já na Zona Sul – as pessoas têm medo da cor dele. Cancelam corridas e mais corridas quando veem se aproximar o motorista preto. Leva nota baixa nas estrelinhas do Uber sem saber por quê e é quando eu, sutilmente, introduzo o tema “Racismo” nas entrelinhas.
Ele me conta que, certa vez, passeando com um primo numa HB 20, avistaram uma blitz. Na hora ele comentou que seriam parados, pois “preto não pode ter carro”. Dito e feito, o policial, também negro, o que choca ainda mais, abordou os dois:
– De quem é esse carro?
Comentei que era um absurdo um povo que veio para o Brasil sem querer vir, nos porões insalubres dos navios negreiros, trabalharam escravizados por trezentos anos na construção do que se considera Brasil, um povo que deixou para nós o que de melhor temos em cultura, culinária, dentre tantas outras coisas…
– E não tem valor nenhum (sentenciou o motorista).
– O racismo me entristece tanto… (continuou).
Eu fiquei tentando trabalhar, em vão, a minha empatia de compreender que dor é essa que se sente quando alguém não nos aceita simplesmente pela cor de pele. Ficamos em silêncio por um tempo… Claro que não consegui acessar a tristeza que tem nessa frase.
– Um advogado deu um pancadão na minha porta… “Eu pedi aqui!!!” falou gritando comigo, sendo que o GPS me deu outro local, só um pouquinho depois.
Consigo visualizar perfeitamente a cena deste infeliz grosseiro… Isso, infelizmente, faz parte da relação das pessoas com minha cor de pele com as pessoas da cor da pele do motorista do Uber…
– Dia desses levei uma nota baixa porque a “dona” não gostou da música que estava tocando.
Perguntei se ela era crente e se estava tocado funk. Foi o contrário, ele havia colocado músicas de igreja e, pelo visto, ela queria ouvir um Mc qualquer coisa, sem desmerecer os Mcs.
Falamos sobre a cultura da “treta”, que tem gente que adora uma confusão. Será possível que a pessoa que anda de Uber não tem a compaixão com aquele funcionário de ninguém, sem direito algum de nada, que se adoecer ou sofrer um acidente não terá ninguém que o valha, será possível que a pessoa não pense que se está ruim pra ela por causa da música, ou porque o carro é meio velho, está muito pior pro funcionário da Uber para quem, certamente, aquele não era o trabalho dos sonhos? Eu sempre penso nisso antes de dar nota. Só dou cinco.
Em uma corrida de quase uma hora, o problema de quinhentos anos do Brasil que nos é esfregado na cara todo santo dia, dentro das nossas casas – ou você não tem uma empregada negra que passa perrengue do qual você só ouve falar? – só não vê quem não quer. O problema é que a grande maioria não quer ver.
Por hoje, fiquei com meu motorista de Uber que me jogou na cara nosso maldito contraste. Ele disse que me daria cinco estrelinhas e eu dei as cinco pra ele. Tomara que ao menos uma delas brilhe.