Voltando a ouvir o mundo

voltando a ouvir o mundo

Obrigada por um vírus tinhoso a não conviver com quase ninguém, ando muda.

E cada vez que emudeço, é como se as vozes que habitam em mim e são sufocadas pela mediação do cotidiano, das conversas rasteiras, do que preciso fazer, dizer, ser, é como se tudo o que me distrai de mim ecoasse em alto e bom som, livremente, como crianças deixadas soltas e sem adulto por perto.

Em vão, busco com a razão silenciá-las. Elaboro daqui, racionalizo dali, justifico um pensamento, tento puxar lá da infância via Freud o por quê de sentir da forma que eu sinto o que sinto, o motivo de eu ter medo disso, ou daquilo, tento me organizar e me entender e… as vozes riem de minha cara, feito crianças.

Sem sair, como posso ser atravessada pelos corpos encantados das ruas – parafraseando o querido e maravilhoso ser humano e escritor Luis Antônio Simas – como posso? Sem sair, como inventar as histórias que eu crio das pessoas só de olhar pra elas e, a meu ver, senti-las? Sim, sou uma espécie de fofoqueira peculiar, a que cria as intrigas cá com os meus próprios botões.

Tipo hoje, só pra ilustrar, sentei pra tomar um açaí – sim, tenho me desconfinado, já, já, a fofoqueira consigo mesma, volta com tudo 😊. Pois bem, eu me sentei pra tomar um açaí e, três mesas depois, porque o distanciamento prevalece em minha rotina, um homem falava alto e o que eu captei foi que ele estava tentando ajudar uma moça que precisava de um exame urgente.

Das frases que peguei, em menos de cinco minutos de escuta, ouvi: “A moça da nossa igreja.”, “Sou amigo do deputado.”, “Você consegue fazer um preço menor pra mim aí no hospital?” e, dirigindo-se a sua mulher: “Amor, liga, é só pra dar aquele queixo”.

Pois bem, mesmo eu quase não saindo de casa, em um átimo de conversa, eu ouço o Brasil todinho na voz de uma só pessoa.

Eu sou muito cismada com igrejas. Sou, me desculpem as leitoras que não são, por favor, não me apedrejem, mas eu tenho cisma com padres. Com as igrejas discípulas de Edir Macedo, aí é que eu me tremo todinha. Os abusos são muitos e em vários sentidos. Só pra não me alongar nos exemplos, ouvi esta semana que a França concluiu uma apuração sobre abusos sexuais nas igrejas a pedido da própria igreja católica. Pois, pasme, entre os anos de 1950 até 2021 – sim, até agora – mais de 300.000 (trezentas mil!!!) pessoas foram abusadas sexualmente por padres e afins. Nem preciso discutir se a a minha cisma tem ou não fundamento.

Daí o cabra junta “a nossa igreja” com “sou amigo do deputado”. Ô, meu povo, esse nepotismo estendido aos amigos no Brasil é o fim. E é tão recorrente. Agora mesmo, no governo atual, no que se queixa que não tem corrupção, vai lá dar uma olhada nas amizades dos filhos 01, 02, 03, 04 e veja o tanto de amizade favorecida que existe. Só pra não me alongar, dá uma sacada no Queiroz e família.

Aí o vizinho de mesa junta “a nossa igreja”, com “sou amigo do deputado”, com a pechincha no preço do hospital porque ele queria ajudar a moça da “nossa igreja”. Meu povo, só um parêntesis, o que eu mais torcia nesse momento era que a moça realmente fosse atendida em qualquer lugar, porque a situação parecia grave. E sei que tudo pode não passar de uma especulação injusta, mas, como eu disse, não tenho muito com quem falar além dos meus botões e, vocês hão de concordar, o Brasil – e o mundo – levam esta alma fabuladora a pensar assim.

E, por fim, para dar a pá de fomento no meu pensamento, ele se vira pra mulher, que me parecia tanto desconfiada de alguma coisa que não peguei, quanto enfadada, quanto frustrada, já que a família do interior estava passeando em um shopping da capital, com a filha, e a conversa parecia atrapalhar o programa, pois ele se vira pra ela que não estava muito a fim de participar daquilo e pede pra ela ligar pra não sei quem pra ela “dar um queixo” (usar a lábia, pra quem não é do Ceará). Meu povo, cismei.

Cismei e criei esse enredo aqui todinho que pode ser todo uma mera coincidência e eu uma pessoa que é capaz de falar de amor, mas que, às vezes, joga um veneno porque se tem uma coisa a qual eu não me nego a ser é humana, pois eu fiquei só ali especulando sozinha enquanto eles não faziam a mínima questão da discrição.

As vozes internas se calaram de pensar sobre mim e começaram a ecoar as minhas cismas. Ficava tentando silenciá-las, racionalizando que o cara só estava era querendo ser prestativo – e estava sendo. E ele podia até ser uma pessoa legal, pelo que entendi, era médico, podia ser um médico legal, mesmo sendo amigo do deputado que, aí já é mais difícil, mas podia ser um cara legal também. A igreja, coitada, podia ser uma instituição que realmente só faz o bem e o quanto ao queixo que ele pediu pra mulher dar… Ah, podia ser só o “jeitinho brasileiro”.

Didi-Humeberman, um filósofo francês do contemporâneo, tem um conceito muito bacana para falar de arquivos, e isso inclui os nossos registros de histórias, experiências. Ele fala que o mesmo arquivo pode cer acessado por cada um de forma absolutamente distinta, em tempos diferentes e não necessariamente em ordem cronológica. Pois a minha rede de indícios e de experiências que ouvi e vivi aqui e acolá me levaram a divagar por vários conceitos enraizados a partir da fala única de alguém que nada tem a ver comigo e que de nada sei. Por isso, não se trata de uma acusação, é uma fabulação. Baseada em fatos reais, mas fabulação.      

Tomei meu açaí delicioso, paguei a minha conta e segui com a minha vida atravessada dos corpos encantados e desencantados das ruas, mas corpos que nos formam, que nos fazem, que nos desvelam, nos denunciam, nos escondem… Nos definem e nos borram.        

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