A lua e o tempo da delicadeza

A lua e o tempo da delicadeza

Nesses duros períodos de pandemia, fiquei me lembrando do dia em que me ligaram, faz tempo, perguntando se eu já tinha visto a lua naquela noite.

Daqui de onde eu moro, os arranha-céus já riscaram o céu por inteiro, não há mais lua, nem pôr do sol. O que me resta neste imenso latifúndio do qual o mundo inteiro se apossa sem poder nem triscar, o que me resta do céu, de todo encanto que ele derrama, todas as lendas, as histórias, os sussurros, de toda a sua magia, o que me resta do céu são pouquíssimas estrelas e minha imaginação que nunca alcança sua imensidão. Vezenquando a gente – eu e papai – conseguimos ver Vênus, o que já é motivo pra celebração.

– Desce, que eu te levo pra ver a lua.

Não sei você, mas eu trocaria todos os “eu te amo”, por um “desce que eu te levo pra ver a lua”.

Trocaria não pelo romantismo bobo, raso, corriqueiro e tão carente de conteúdo, de profundidade, de veracidade. Trocaria pela delicadeza. Troco muita coisa na minha vida pela delicadeza. Aliás, nem troco porque a delicadeza não exige que nada se troque, apenas que se doe e doar-se mais nos devolve do que nos leva.

Uma mensagem de afago depois de uma má notícia, uns brownies que chegam num dia amargo, pessoas que vêm (no tempo em que as pessoas vinham) pra abraçar, pra desejar coisa boa, pra se despedir, pra apoiar. Alguém que compra o que você mais gosta pra te receber, alguém que te indica um filme que fale do tema que você está estudando, alguém que se lembra de ti e que te manda um vídeo de um lugar onde só falta você e aquela música que você ama tocou bem naquela hora, alguém que te manda um livro porque acha que você vai amar. É uma feijoada que se divide com a vizinha, um pedaço de bolo do aniversário no dia seguinte. É um “eu tô aqui” mesmo que de longe.

Delicadeza. Que geralmente é de graça, é quase nada. Não custa e como constrói. A delicadeza faz ponte entre as almas. Um gesto é capaz de furar todas aquelas barreiras que se coloca em cima de si pra esconder sentimento verdadeiro, pra esconder afeto. A delicadeza, ela entra delicadamente rasgando e chegando onde o que é nosso mais cala: nos sentimentos.

Não tem nada a ver com bajulação, não tem nada a ver com retribuição, não tem nada a ver com ser educado, tratar bem. A delicadeza é de outra natureza, de um patamar onde as palavras não chegam, não há legendas pra um gesto delicado, nem adianta dizer obrigado, a comunicação é pelo olhar, pelo sorriso, pelo abraço (quando se podia dar e quando se puder dar), de um lugar pra onde se eleva a alma tanto de quem faz, como de quem recebe.

Há um encontro lindo num gesto delicado, ainda que as pessoas estejam a léguas de distância. A delicadeza nos faz pertencer, nos faz inseridos em uma história, reforça laços, nos faz vivos, afaga o coração mais empoeirado, ela degela, ela abre um sorriso, ela… me faltam palavras.

Pois eu me lembrei, nesses tempos tão estranhos e doídos, do dia em que me chamaram pra ver a lua. Eu me lembrei desse tempo de delicadeza, desse lugar, em lugar algum, de onde ela, a delicadeza, brota súbita e se faz centelha, vaga-lume, se faz pôr do sol, se faz estrelas, faíscas… Se faz lua.

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