Amizade: última crônica do ano

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Vocês que me desculpem, final de ano é assim mesmo: a gente fica refletindo sobre aquela história, tipo, “marcas do que se foi” e dos “sonhos que vamos ter” e fica mesmo mais sensível e mais pensativa sobre tudo, principalmente – aliás, principalmente nestes tempos – sobre as relações, os afetos…

Um adendo acabei de saber aqui que essa canção “marcas do que se foi” foi encomendada pelo governo federal em 1976, ou seja, em plena ditadura militar, pra ludibriar as pessoas de que tudo estava bem. Olha que horror, eu sempre cantei esta cantiga na maior inocência, mas, na verdade, ela escamoteava todo o absurdo de censuras e torturas que aconteciam naquela época e que era aplaudida pelo atual presidente que sumiu – ainda bem – depois do salvador dia 30.

Pois bem, eu tenho três amigas da faculdade. Juntas, formamos um quarteto que há vinte e dois anos (qualquer alusão negativa a este número é mera coincidência) se conhece, convive e se ama. Nossa amizade já passou no teste de final-da-faculdade, no teste da as-amigas-se-casaram, no teste do tiveram-filhos e até no teste foi-morar-longe. Nossa amizade nunca se abalou, muito pelo contrário, sempre encontramos tempo pra gente e curtimos saber que cada uma anda seguindo seu rumo, construindo coisas, sendo felizes.

Pois, se olharmos sob a ótica desses tempos, nós continuamos de parabéns e certamente merecemos um troféu. Acabamos de passar no teste: política-lulaversusbolsonaro. Das quatro, duas eram Lula, duas Bolsonaro. Eu, uma “das Lula”, não só votei no Lula, como militei, fiz campanha, enchi o carro de bandeiras e adesivos e até camisa na janela eu botei. As outras: nem tocaram no assunto.

De minha parte, sabia de suas preferências políticas, vi em suas redes que jamais votariam no Lula e o que eu fiz? Nada. Fiz que nem vi, ou melhor, respeitei, ou melhor ainda (o que penso ser o que nos diferencia de muita gente que andou brigando por aí) nós todas optamos por preservar a nossa amizade em detrimento de nossas ideologias e pensamentos políticos. Melhor ainda, ainda, nós nem precisamos conversar sobre isso, cada uma certamente sentiu isso e fez assim.

Se você me perguntar se foi fácil, eu te digo que foi, superfácil, porque sempre tive muito claro pra mim o que elas três representam na minha vida, e tenho certeza de que para elas também: a nossa amizade é ouro.

Nunca vou me esquecer do dia em que a avó de uma delas faleceu. Salvo engano, já havíamos saído da faculdade, era noite quando uma outra me ligou para me contar do acontecido. Todas nós conhecíamos a vovó Ana – linda, dos olhos azuis mais doces que eu já vi – e, num falar rápido umas com as outras, decidimos ir pro velório pra ficar perto da Mari. Como me marcou esse dia, nós quatro juntas, num momento de dor, sendo família uma da outra. Naquele dia certamente apertamos o nó da nossa amizade.

Dali em diante, já tivemos tantos momentos tristes, muitos, e muitos felizes também, claro, divertidos. Já tivemos início e finais de namoros, de casamento, já tivemos perdas irreparáveis, já tivemos reaproximações, festas, trabalhos, provas da faculdade e até a matrícula, pois sempre foi Mariana quem me matriculou nas disciplinas da Unifor.

Se somar, temos “terabytes” de horas de conversas regada a muita risada, compreensão, escuta, atropelamento de assuntos, lágrimas, alguns carões, muita empatia, muito cuidado, muito carinho. Diante disso tudo, digo que foi muito fácil preservar o que fomos e somos ao invés de mitificar um ou outro candidato.

Eu soube fazer isso com todos os grupos? Nããããããão! Souberam fazer isso comigo em todos os grupos? Também nãããããããoooo!!! Fui agredida, xingada, chorei pra burro, mas também me pediram desculpas e eu já perdoei porque meu coração não sabe carregar rancor. Passam-se os dias e eu vou amolecendo, aí vou tendo que me lembrar que eu tenho que sentir raiva da criatura, mas a raiva vai se esvaindo como sol que bate em pele de gente branca: fica bem vermelho e no dia seguinte não tem mais nada.

A verdade é que a polarização ficou entre votar num desumano x votar num corrupto; votar no responsável-por-centenas-de-milhares-de-mortes-pela-covid x votar-em-quem-deixou-a-roubalheira-correr-solta; votar-em-quem-é-homofóbico-racista x votar-num-corrupto… Enfim, ao olhar de um e ao olhar do outro, a escolha do candidato oposto era bendizer uma assinatura do caráter da pessoa: fulano apoia bandido x fulano apoia assassino.

Fomos imaturos, é o que eu penso. Fomos intolerantes também e fizemos metonímia de nós mesmos, tomamos uma parte de nós e julgamos o todo, nos esquecendo de todos os anos e anos e eras de convivência, da construção de um laço, de todos os momentos bons, dos afetos. Julgamos e fomos julgados, rosnamos, pois perdemos a capacidade de dialogar racionalmente, e fomos mordidos… e mordemos.

Só que em um ciclo de amizade, em um núcleo duríssimo e importantíssimo pra mim, nós optamos por cuidar de nós, como fizemos a vida toda desde que estamos juntas, ouvimos nossas dificuldades durante esses quatro anos, e não foram poucas, e nos protegemos das farpas, das agressões, das grosserias e do desamor.

E ontem, no “cerimonial” que sempre fazemos em nossos Natais, principalmente quando conseguimos juntar nós quatro, já que uma de nós não mora em Fortaleza, falamos de sermos uma árvore, onde uma é a raiz – forte e firme – outra são folhas – no caso, eu, que vêm e vão, que são livres e voam – a outra é fruto – pois é doce – a outra é flor, pois é alegre. O caule, que nos sustenta, nos liga e nos alimenta é a nossa amizade que continua firme e forte imune a Lula e a Bolsonaro porque eu não sou nem louca de arriscar minhas amigas por causa de seu ninguém.

Que em 2023, a gente possa juntar os cacos das relações despedaçadas e refazer os laços que nos sustentaram por toda uma vida.

Feliz ano novo!

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