Desarrumando a casa – Vô

Ontem foi dia de desarrumar a casa do meu avô. Já estava indo embora do prédio quando ouvi vozes das minhas tias e eu não posso ver um aglomerado de família que me chego.
Lá estavam elas, tirando quadros das paredes, arrastando móveis, jogando pilhas e pilhas de jornais velhos que fizeram sentido para o meu vô, mas que não fazem mais.
E eu ali, sem conseguir jogar nada fora, não conseguia embalar nada e só fazia era chorar com cada descoberta das coisas dele: uma foto, uma roupa, uma boina – que ficava um charme nele -, um par de óculos, que acabei pegando para mim, assim como as fotos e as boinas.
– Posso ficar com isso tia?
– Se lhe interessar, pode, pois temos que esvaziar a casa.
– Tia, quem vai ficar com essas fotos?
– Se lhe interessar, leve.
E foram comigo Fernando Pessoa, Maria Bethânia, Olavo Bilac – o preferido dele e, por consequência e exemplo, o meu 🙂 -, fotos dos seus 94 anos, fotos dos netos com ele, dos bisnetos, vieram as boinas – três – e, o que mais amei, o par de óculos de grau.
Minhas tias e meu pai, que também nos acompanhava nessa saga, ficaram com outras fotos que lhes significavam, guardaram poemas e empilharam louças e mais louças e bandejas e um monte de coisas que não fiquei pra ver. Uns guerreiros, esses filhos, pois tarefa pior só tem uma: a de “arrumar o quarto do filho que já morreu”. Isso é que é saudade, não é Chico Buarque?
Realmente não quis nada de “valor”, nada que eu pudesse aproveitar materialmente. O que eu queria mesmo era guardar a alma do meu Alberto amado, queria era ficar com lembranças das coisas que me são tão vivas, queria poder reter um pouco do jeito dele, do sentimento, das paixões e de um universo mais desconhecido, bem dele, o qual não pude explorar tanto, por vacilo, mas que adoraria ter ficado horas, e horas e horas falando sobre. Fiquei algumas boas e guardo-as comigo na cachola.
Por sorte, sua sensibilidade que ficava por trás de um jeitão de coronel era tão grande, que extravasava em poesias declamadas e sempre uma voz embargada no final.
É, se saudade tem beleza, deve ser essa aí. Aquele lamento que não dilacera, pois o tempo foi vivido plenamente. Aquela lágrima mais emocionada do que triste, já que não tem revolta, nem injustiça na partida. Aquela dor que parece uma boa companhia, pois vai sempre nos acompanhar, mas não vai espetar, não vai ferir, vai só impedir que as boas lembranças sejam esquecidas.
Não é fácil ver beleza no que faz sofrer. Ainda mais nesse mundo 220V no qual nos obrigamos a viver, onde sempre temos de estar com algum projeto em curso, alguma opinião formada, alguma ocupação que nasça com o sol e só se ponha com o nascer da lua, alguma ruga na testa e com os nervos de aço. Sofrer é perda de tempo, parte pra outra, pula essa página, ou muda o foco, pois você tem mais o que fazer.
Pois é, mas a saudade me faz parar no tempo. Faz-me esquecer do checklist diário e me leva para bem longe. Para um lugar aonde moram pouquíssimas pessoas, aquelas com as quais minha alma se identifica e me pede pra ficar.
Eu fico, eu paro, eu sinto, eu falo, calo, remoo, resmungo, choro… E sigo, afinal, há de ter muito futuro a ser vivido para que se transforme em saudade logo mais e, para que lá no fim, eu possa dizer que tudo valeu a pena, pois a alma não foi pequena.

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