Ele andava meio trôpego pela rua. Não que estivesse bêbado, não parecia estar, o andar era de alguém cansado, ou com problema nas pernas que adquirira na vida. Sim, certamente não nascera com aquilo.
Seu rosto que me contava essa história desse corpo que me atravessou. Atravessou a rua em frente ao meu carro num sinal fechado. Não era na faixa de pedestre, confiou-se no sinal vermelho e foi, como se chegar do outro lado da rua lhe causasse bastante cansaço.
Pele negra e rosto manchado, por isso que pensei em doença. Peles negras quase não mancham. Pelo menos por fora não, já por dentro, com tanto sofrimento que passam…
Pensei nele quando criança. Imaginei, quer dizer, pois jamais o vira, talvez nunca mais o veja. Certamente aquele corpo já foi mais feliz, já teve mais sonhos, já chutou bola longe penando em gols que faria na vida, já deve ter amado uma colega da escola, deve ter feito planos, deve ter tido curiosidades e perturbado avós, pais, tias pra saber o que se passava depois da rua, deve ter tido sonhos…
Quando se interrompem os sonhos? Quando cessa o tesão pela vida e a pessoa se torna um carregar-se de si mesma? Quando o corpo deixa de ter vontades e se rende ao que é grave na gravidade, esse peso que se carrega na alma. Não sei se peso na consciência, não sei se amargura, não sei se traumas, frustrações… Peso.
Peso que vai sufocando e deixando o ar rarefeito, quase não se tem fôlego pros dez passos que exigem a rua. Peso que pesa as pernas, barriga, corpo todo como se se carregasse em dobro, todo o peso do mundo de um mundo vazio, que nada desperta, onde nada se objetiva, com horizonte curto, horizonte que termina ali, do outro lado da rua.
Fiquei pensando nele criança. Pobre, talvez, mas com olhos que brilhavam, com amigos correndo atrás de uma “dente-de-leite” e sonhando ser Pelé, Tostão, Rivelino. Talvez nem de futebol gostasse, mas soubesse girar um peão feito pelo avô como ninguém, talvez fosse o mais craque nas “bilas” – ou bola de gude, depende de onde você me lê – talvez pedisse que a professora lhe lesse aqueles livros todos da biblioteca da escola, onde se tinha mais espaços do que livros, mas nos livros tinham mundos ele viajava.
Talvez tenha levado muitos nãos. Talvez o fizessem acordar bem cedo dos sonhos. Antes da alvorada pra ajudar o pai na roça. Talvez tenha vivido a pior parte da vida, essa que se envereda pro que nos há de pior. Talvez não de maldade com o mundo, mas consigo.
Máscara no queixo, como quem enfrenta a doença, ou já desistiu de si a ponto de ignorá-la. Corpo sofrido, com peso a mais do que se possa carregar e mancha numa pele que não se costuma manchar, não por fora.
Por dentro, talvez, as perdas, a dor de amor, o abandono, o preconceito, a saudade, a frustração… Coisas que, se não cuidar, matam. Pior, vão matando, minando, até a gente se esquecer do que um dia fomos, até nos tornarmos um ser cambaleante de nós mesmos, que mal consegue atravessar a rua numa segunda-feira pela manhã, quando tudo se reinicia, mesmo sem ainda ter tido um fim.
Fim.