Escrever no Brasil é escrever contra

escrever no Brasil é escrever contra

Não é minha a frase que dá título a esta crônica, que talvez se estenda e se torne um breve ensaio, porque há muita coisa contra a se escrever no Brasil.

A frase é do Silviano Santiago e ela é ampliada no espaço, segundo ele: “falar, escrever, na América Latina é falar contra é escrever contra” e essa ideia é desenvolvida brilhantemente no ensaio “O entre-lugar do discurso latino americano” que eu vou deixar o link aqui.

O Silviano se refere ao fato de que nós da América Latina precisamos entender que somos colonizados pelos europeus até hoje na cultura, na música, no comportamento, na literatura, no pensamento, na forma como enxergamos o outro e, acredite, isso não é bom, isso é grave.

Enxergar o mundo com esse eterno olhar pequeno burguês europeu, essa cópia mal feita de alguém que nunca se pretendeu sermos nós, mas que sempre nos olhou de cima pra baixo, sempre buscou imprimir no mundo a sua arte, a sua cultura, a sua soberania, um povo para o qual a gente, essa mistura entre eles, os negros e os índios, nunca passou disso que nos tornamos mesmo: um terceiro mundo povoado por pessoas menores, inferiores.

Adendo: em momento algum estou desmerecendo a arte e a cultura europeias. Russeau, Monet, Sartre, Picasso, Dali, Gaudí, Van Gogh, Simone de Beauvoir etc, etc, etc, etc… etc são realmente expoentes do que entendemos por homo-sapiens-sapiens, são personalidades fundacionais e fundamentais para um pensamento cultural, artístico, filosófico de mundo, contudo, para que possamos nos entender hoje em dia e evoluirmos como sociedade civilizada, sabe-se lá o que se entende por civilizado atualmente, é fato que precisamos nos reconhecer como gente independente e ser gente independente de europeu é ir contra.

Adendo 2 – Civilização parece um conceito confuso de interpretar. A partir de que lógica se considera alguém, ou uma sociedade civilizada. É pela riqueza daquele lugar, pela quantidade de Mc Donalds e lojas Zara que a província possui? Considera-se o IDH e a qualidade das escolas públicas no conceito de civilização? A civilidade se constitui, como criticou Ariano Suassuna nessa entrevista impagável, a quem já foi ou não à Disney? Tem a ver com o tanto de pretos e pobres que se mata por dia em uma capital? Ou tem a ver com a quantidade de línguas que a pessoa sabe falar? Agora me diga, adianta falar uma ruma de línguas de a pessoa não consegue interpretar o que acontece na calçada da casa delas, com aqueles amontoados de pedintes à míngua? Enfim, eu mesma tô sem saber “”what does “civilização” means.””

Sem desmerecer ninguém, mas como dizer que o Cânone literário no Brasil, hoje, não passa por Conceição Evaristo, por Djamila Ribeiro e, claro, por Chimamanda Ngozi? Como idolatrar a Beyonce sem fazer uma reverência ao trabalho da Anitta? Como dizer que o que deve ser lido pra entendermos de nós está em Deleuze e Gatarri, e não nos indígenas Ailton Krenak, ou Davi Kopenawa? Aliás, do Krenak, pelo amor de deus não deixe de ler “Ideias para adiar o fim do mundo” e o “A vida não é útil”. São livros curtíssimos, mas que nos dão uma dimensão tão vital, tão importante do que somos enquanto seres que partilham a Terra com outros seres e não seres donos da terra a quem os demais seres devem servir.

Adendo 3 – Fomos colonizados pelos europeus, todos sabemos, mas hoje em dia o norteamericanismo nos devora. Ainda mais agora com o dólar batendo quase os sete Reais.

Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo nosso, defende que nós humanos entendemos a nós mesmos como diferente de todos os outros seres, mas que a humanidade tem a ver com todos os bichos e que nós somos apenas mais um. Predadores de alguns, presa de outros. Veja o Corona vírus, por exemplo, nós somos presa fácil pra ele e ele nos devastou.

Mas voltando ao que somos e ao que temos pra hoje, precisamos desdizer o que disseram de nós. Somos um povo único e pacífico? Uma sociedade feliz e carnavalesca? É mentiiiiira!!! Somos uma sociedade racista que apaga pretos todo santo ou profano dia, que quanto menos dessa raça existir, mais seguros a gente vai se sentir e que negro e bandido é quase sinônimo para a política, a polícia e a sociedade brasileira. Tô mentindo?

Os índios estão doidos para “se civilizarem” e se tornarem “seres-humanos” como disse o inominável presidente da república – o meu vocabulário não encontra mais palavras para adjetivar JB – é verdade isso? Mentiiiiiira!!! Agora me diga como é que os povos indígenas podem viver da subsistência, da sua cultura de caçar e pescar, se toda a sua terra em volta está sendo destruída, se o peixe está todo tomado pelo mercúrio jogado nos rios para a extração do ouro? Então as terras indígenas não são enormes, eles precisam de uma grande área para o ecossistema funcionar a fim de que possam finalmente viver da caça e da pesca. E, sim, eles têm todo direito, é você que acha que não que precisa se descolonizar.

O progresso tem a ver com o dinheiro, eu concordo, mas não com selvageria, não com empresa crescendo a troco de esgotos jorrados no mar, nos rios, no Tietê, ou na Baía de Guanabara, só pra dar dois grandes exemplos, mas tenho certeza de que na sua cidade tem um irmão gêmeo desses dois.

Tem a ver com dinheiro? Tem! Mas não com gente trabalhando de domingo a domingo em shopping center pra que a gente não pare nunca de comprar o que a gente já nem precisa. Toda vez que vou a shopping no domingo eu penso que aquela vendedora deixou o filho, o marido, a mãe, etc, em casa, ou na praia para estar ali sem gerar nenhuma memória a qual ela possa se lembrar no futuro. Penso no tempo de filho perdido, de vida perdida.

Sei que aqui já estou misturando a Europa com o Capitalismo selvagem americano que sempre acho que a humanidade poderia dar um passo atrás no “progresso” para ser mais feliz. Minha utopia, eu sei, respeite!

Mas voltando ao que temos de mais plausível, a gente tem que parar de ser besta. É importante que olhemos para as referências de fora, claro, mas adaptemos às nossas, que olhemos para as nossas referências e nos orgulhemos disso, e reproduzamos isso. Veja a Anitta, nossa pop star onde está. Pois saiu de Honório Gurgel e, de lá, de onde ela veio, tem muita gente boa.

E não é só pela arte e pela cultura que a gente precisa se reescrever não, é pra gente poder viver em paz, é porque somente a gente se reconhecendo e reconhecendo nossas diferenças e os nossos direitos é que a gente vai poder se relacionar de um modo saudável e isso implica sair na rua e não sofrer algum tipo de violência. Agora estou puxando Édouard Glissant, um escritor, ensaísta, professor martinicano, radicado na França, que pensou o mundo a partir da África. A Poética da Relação, um livro lindo dele, caso você se interesse.

Criar um lugar nosso, um pensar nosso, uma forma de nos enxergarmos, nos reconhecermos, nos respeitarmos e nos valorizarmos me parece a única saída pra esse hospício violento – redundância, eu sei – ao qual fomos destinados quando pessoas da Europa resolveram dizimar os índios usando a força escravizada dos negros. Deu no que demos.

Pois serei contra, escreverei contra, mesmo bebendo da fonte europeia, como boa brasileira que sou.

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