Família: “mesmo rio”, tantas águas

mesmo rio

Comecei ontem a ler “mesmo rio” da Elisama Santos. Psicanalista, este é o primeiro romance dela, os outros livros eram mais voltados para a análise dos comportamentos, acho. Não os li, mas, já ouvi falar.

No romance, a história é narrada em terceira pessoa, mas majoritariamente sob a ótica da irmã caçula, Rita, que teve uma relação bem ruim com a mãe; fazia dez anos que não a via e, agora, soube de seu câncer terminal e vai até à casa visitar, ou se despedir desta mãe. Nada disso é spoiler, porque se dá bem no início do livro, que é onde me encontro. Elisama ainda está apresentando as personagens: irmã do meio, irmão mais velho, o pai e, claro, a mãe.

A leitura é angustiante, pelo menos para mim tem sido, e isso já é um bom sinal de que o texto é bom. O traço psicanalítico da autora fica muito claro na forma de narrar as sensações das personagens, mesmo quando ainda crianças. Mesmo que, vez ou outra, fique estranha a relação da idade da personagem versus a compreensão daquele sentimento específico que está sentindo, mas isso a gente bota na cota da ficção e resolve. Eu estou gostando.

Gostando porque a família narrada é disforme como qualquer outra família. Irmãos com características completamente diferentes, e eu adorei como ela exemplifica a formação da personalidade de cada um: se Fulana é doce e meiga, a outra precisa se rebelde e problemática, pois, na família, só há lugar para um com determinadas característica. Os outros que achem características exclusivas para si. Fiquei me perguntando se era assim mesmo… Vai ver que é…

Pai e mãe – os bastiões da nossa segurança quando pequenos – são apresentados desde quando eles eram pequenos: o pai de Rita apanhava do avô porque apanhava na rua dos amiguinhos. A avó paterna, em vez de vir em socorro do filho, dizia que o marido era daquele jeito mesmo, que o filho subisse pra casa escondido quando apanhasse na rua. Total desamparo. Já a mãe, era mais uma filha no meio de muitos e fora criada pela irmã mais velha, como é de hábito em famílias mais humildes. É forte quando a autora narra que uma criança se sente solta no mundo, caindo e a única coisa que a ampara é o colo, por isso ela chora tanto. A mãe de Rita mal sabia o que era colo. Somente quando adoecia tinha a sua do lado e parava de chorar.

Rita, portanto, assim como todas nós, era filha dos traumas, dos recalques e de porções machucadas na infância de seus pais, cujas feridas se arrastam, sem cicatrizarem direito, por toda a vida. Como se sempre voltasse aquela aguinha, aquele pus, um pouquinho de sangue ao longo dos anos. A nossa criança nunca morre, mesmo que se machuque tanto!

E a nossa criança sofre não necessariamente porque sofreu algum tipo de violência, mas é porque somos cada um de um jeito e jamais nossos pais poderão suprir as expectativas que nutrimos sobre eles. E nem o contrário, não seremos também tudo o que eles esperavam de nós. Vai sempre faltar um abraço, um apoio, a gente vai sempre se lembrar daquele carão injusto, ou daquela fala atravessada. Já eles, vão levar culpas que não são deles, vão ser deixados de lado na nossa adolescência sem que tenham feito nada para merecer nosso desprezo. Nós vamos colocar sua paciência à prova todos os dias antes de ir pra escola e eles, vão ter de se avir com a criança que foram e com a educação que tiveram, fosse ela traumática, ou não para tentar nos dar um norte.

Minha mãe, por exemplo, era quem nos acordava pra ir pra escola. Ela só nos despertava com beijinhos na bochecha e uma voz doce… Pois eu vejo o meu irmão acordar meu sobrinho sempre com carinho, nunca com um: bora, acorda!!! Eu, nas poucas vezes que acordei criança para ir pro colégio, fossem minhas afilhadas ou meu sobrinho, foi do mesmo jeito, com carinho, com cuidado… A gente aprendeu que é assim que se acorda :). E minha mãe só reproduzia o que a mãe dela fazia. É claro que quando a gente enrolava, depois de um certo tempo, ela perdia a paciência, principalmente quando me pegava dormindo em cima da pia do banheiro, quando deveria estar tomando banho para não me atrasar.

Eu estou dando um exemplo feliz e este exemplo foi perpetuado, mas a gente também pode fugir do que a gente não concordava e ser o oposto. Porque nossos pais também não estão imunes às suas crianças… A criança dos nossos pais também não morre e, muito antes de serem nossos pais, eles são aquelas crianças com seus traumas, medos e inseguranças, mas também são amparo, carinho, cuidado…

De repente, viram pai e mãe e são responsáveis por ajudar a formar um ser humano completo, mas, coitados, eles são formados de cacos, como todos somos. Acho que pai e mãe, em alguns momentos, devem carecer mais de colo do que filho e filha… Eu, por exemplo, que não tenho filhos, posso me desestruturar porque ninguém precisa tão desesperadamente do meu equilíbrio. Mas já se eu fosse mãe… Vez por outra vejo minhas amigas exercendo suas maternidades e me vem na memória elas crianças, suas mães as educando e eu vejo tanto do que foram ali, seja na hora de compreender, seja na hora de brigar com seus filhos e suas filhas. Olho para as suas crianças e vejo as crianças que fomos e sinto tanto orgulho e respeito por minhas amigas… Ô tarefa difícil é educar!

Não estou falando que todo comportamento é justificado, de jeito nenhum. Existe o inadmissível, claro, mas existe também o máximo que aquela pessoa consegue dar, e isso há que ser respeitado, penso.

Pois, aqui imersa nessa leitura que termina por mexer com a criança de todas nós, estou com a minha à flor da pele, querendo pular pra fora de mim e atuar… Mal sabe ela, ou talvez saiba, que nunca deixou de ser protagonista de minha vida, àquela moreninha, gordinha, com covinhas, e sentimentos vários que não sabia onde botar… E ainda hoje não sabe.

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