Literatura: um resgate às velhas profissões

as profissões

Quando as pessoas me perguntam: você trabalha com o quê? E eu respondo que faço um doutorado em Literatura e Cultura, elas, meio que achando glamuroso, mas sem entenderem direito o que se faz precisamente num doutorado em Literatura, me devolvem:

– Mas você só faz o doutorado? Não trabalha?

No que, agora, para ser mais precisa, já sei o que vou responder para explicar, ou confundir ainda mais, meu interlocutor. Segue o diálogo imaginário (que eu adoro fazer, vocês não?):

– Eu sou pesquisadora pela PUC-Rio.

– E qual área você pesquisa?

– Literatura.

– E isso serve pra que mesmo?

(Agora vem a resposta que dá sentido a esta crônica)

– Isso faz com que possamos pensar as relações, a nossa existência, bem como a existência do outro. Pesquisando no campo da Literatura, a gente pode ter acesso a diversas formas de pensar, de viver, de se comportar distintas, escritas por outras pessoas que já publicaram, seja um romance, uma biografia, uma poesia, crônicas…

Por exemplo, foi lendo o livro Infância, ou mesmo o Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que pude mergulhar tanto nos costumes violentos de criação de uma criança, como na aridez e na decrepitude humana que a seca, a falta de chuva e de investimentos nessas famílias pobres que vivem da agricultura em climas quase desérticos, pode causar.

Lendo Carolina Maria De Jesus – Quarto de despejo: diário de uma favelada e Diário de bitita – pude perceber a miséria em que vivem tantas famílias nas favelas do Brasil, no caso, São Paulo e em como a crueldade do classicismo pode traumatizar uma criança.

– Mas o que você vai fazer com isso, Luciana?

– Olha, no mínimo, isso vai transformando a minha forma de enxergar os que têm uma realidade diferente da minha, e faz com que eu não olhe para os refugiados com desprezo, por exemplo, e nem ache que eles são o problema. Na verdade, são eles é que precisam de uma solução humanitária. Isso faz também com que, no mínimo, eu tenha todo o respeito e cuidado com as pessoas que me prestam serviços, sempre atenta para uma realidade delas que é mais difícil do que a minha.

Faz também com que eu não pense que “bandido bom é bandido morto”. Claro, depende do crime, crime de estupro e assassinato de crianças são dois dos quais, a meu ver, não tem perdão, mas isso é tema para outra crônica.

Nesse contato que a pesquisa em Literatura traz, ou mesmo a leitura despretensiosa, nos levando a novas realidades, amplia a nossa capacidade de reflexão sobre o mundo e as pessoas e isso gera muito mais empatia, menos ódio, menos rejeição.

Impede, por exemplo, que pessoas gays e trans sejam agredidas, ou mesmo assassinadas diariamente em nosso país, porque você passa a entender que o jeito de cada um, desde que não faça mal a ninguém, não tem nada a ver com a sua vida, é apenas uma outra forma, das várias possíveis, de se estar na Terra.

Aliás, por falar em Terra, foi lendo Ailton Krenak que compreendi a forma como os povos indígenas entendem a nossa vida neste planeta e vi como o nosso instinto (des) humano predador está errado. Isso de a gente achar que o planeta deve nos servir, e não que fazemos parte de um todo e dividimos esse espaço com outras pessoas, outras espécies de animais, e plantas, e minérios, etc.

A leitura também pode te fazer agir de forma aparentemente contrária, isto é, ao se informar mais, ao conhecer mais, permitindo que a sensibilidade seja mais aflorada em você, pode te deixar totalmente intolerante com o racismo, a homofobia, a gordofobia, e isso vai ser ótimo, pois são processos que configuram um retrocesso, uma injustiça e você, mais esperta e atenta, pode ser um pequeno levante contra isso aí.

A literatura não existe para resolver, mas para fazer pensar, então, não espere dela respostas pra tudo, ela vai te incomodar, te inquietar, vai te emocionar, te sacudir e é esse que é o grande lance, ampliar a sua capacidade de pensar.

E é por ela “fazer pensar” é que governos autoritários odeiam as Ciências Humanas, já que um governo autoritário se configura pelo uso da força contra o que não está de acordo com o pensamento de tal governo. Pensamento este que é tão estreito, tão limitado, que exclui – e tortura, e mata – muita gente.

Não, não tenho a ilusão de que nas Humanidade só haja gente de bem e que nas exatas só há gente do mal. Aliás, minha completa admiração pelas pessoas de exatas, pois eu não tenho a menor habilidade para tal. O problema é valorizar uma em detrimento da outra. É valorizar a matemática em detrimento da filosofia, a engenharia em detrimento das ciências sociais…

De que adianta prédios em pé se dentro morarem pessoas que não se toleram em sociedade?

Portanto, acusar o livre pensar e o estímulo a esse livre pensar, ainda que, claro, haja balizas que impeçam o absurdo, mas acusar o livre pensar de balbúrdia e tentar limá-lo do cotidiano das escolas, por exemplo, isso nos enfraquece como seres humanos em potencial para nos tonarmos seres humanos melhores.

Compreender a humanidade de uma perspectiva machista, essa que valoriza os homens brancos-ricos-heterossexuais é limitar a existência e tornar difícil a vida da maioria das pessoas. Ora, por que você acha que a cada sete minutos acontece o estupro de uma menina, ou mulher no Brasil?

Além da impunidade, tenha certeza de que isso também é por achar que a mulher é posse do homem, é propriedade e está ali para servi-lo. Contra isso, pelo amor de Deus, leia Djamila Ribeiro e Chimamanda Ngozi.

E é a isso que me proponho quando escolho trabalhar com pesquisa no campo da Literatura, no campo das ideias, no campo de outras vidas que chegam a mim por outras escritas, outras artes também, pode ser um filme, um quadro, uma perfomance, uma canção, o importante é a produção de um pensamento crítico a partir de outras ideias.

Há quem ache que isso não serve de nada. Pois eu prefiro seguir achando que sem humanidade não há vida possível, que enquanto existirem pessoas que morrem de frio em uma noite de inverno em São Paulo, não há vida completamente feliz possível.

Por isso, tentar tornar obsoleta, ou sem importância profissões como a minha: NÃO PASSARÃO!

De minha parte, quero seguir levando o exercício da reflexão por aí, quero muito dar aulas depois que me formar. Por ora, preciso escrever minha tese e ajudar a tirar o Bolsonaro, porque ele representa esse governo autoritário que pouco se importa com quem precisa de atenção, que não tá nem aí pra minha vida e, penso, que para a sua também não.

#forabolsonaro

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