Narcisa Amália: as mulheres de ontem e de hoje

Narcisa Amália

“Quando intento librar-me no espaço

as rajadas em tétrico abraço

Me arremessam a frase: – mulher…”

Esse poema chamado Invocação foi escrito por Narcisa Amália no final do século XIX – lá pelos idos de 1880 e qualquer coisa – e se ela viva fosse e tivesse escrito este mesmo poema no século XX, ou na semana passada, poderíamos dizer que ainda é super atual.

A rajada do abraço tétrico de nascer na condição de mulher parece nos abraçar todo santo dia, todo tempo.

Desde de termos de nos escamotear em nossos desejos para não sermos julgadas como “devassas”; desde de nós mesmas nos silenciarmos em nossas mais íntimas vontades para agradarmos a uma sociedade que enaltece e valoriza o prazer dos homens; desde termos de nos adequar em roupas, cabelos, peles de bebês; desde ainda sermos as maiores responsáveis pela criação das crianças; desde ainda lutarmos na justiça até hoje por pensões e por registros de nossos filhos (e é claro que há exceções, e é sabido o quanto que o cenário vem mudando no quesito homens que são pais de verdade); até não podermos sair às ruas à noite porque podemos ser estupradas; até levarmos cantadas baratas em ambiente de trabalho e ter de rir amarelo e constrangidas perante àquilo; até recebermos rótulos dos homens e de nós mesmas de como devemos ser ante ao papel que nos cabe… A lista é infindável do arremesso de frases e pedras que recaem sobre nós por sermos mulheres.

Estou lendo um capítulo do livro “Histórias das Mulheres no Brasil”, organizado por Mary Del Piore. O capítulo escrito por Norma Telles – Escritoras, escritas e escrituras – trata da história de mulheres que buscavam a literatura como ofício, mas que passavam por muitas dificuldades no que dizia respeito ao que era permitido, ou o que condizia com a condição de uma mulher para ela escrever.

À mulher, destinava-se escrever sobre assuntos domésticos, sobre histórias de amor, sobre as mulheres que eram salvas por um grande amor. Falar de política, por exemplo, não era coisa para elas e a crítica, obviamente masculina e machista, caía de pau em cima. Elas, por sua vez escreviam em seus “livros-goiabada”, como descreveu Lygia Fagundes Telles, que eram os livros de receita e entre uma e outra, as mulheres colocavam seus pensamentos, ideias e ideais.

Mas elas lutaram. Como a Narcisa Amália, como Maria Firmina dos Reis, Júlia Lopes de Almeida e tantas outras escritoras que tiveram a coragem de se expor, de serem apedrejadas, mas que foram nos abrindo caminhos para que continuemos a nossa luta. Infelizmente ainda é preciso continuar a nossa luta.

Dia desses, fui tomar banho de piscina com minha sobrinha de sete anos – SÓ SETE – segue o diálogo: – Tia Lu, me empresta uma toalha porque eu não gosto de andar só de maiô, eu não gosto de mostrar as minhas partes.

Por um lado, fiquei aliviada de saber que ela se protege e aproveitei pra endossar que ela estava certíssima e que ninguém podia tocar nas partes dela. Por outro, me deu um aperto no coração saber que algo de terrível, vindo de seres abomináveis que até hoje se sentem proprietários do corpo das mulheres pode ser capaz de fazer mal a uma criança. Gosto nem de pensar, mas a verdade é que nós mulheres pensamos nisso o tempo todo.

Já está no nosso DNA não ir, não sair, se cobrir, olhar pra baixo, temer, se submeter. E se contestarmos, somos chatas, “feminazes”, “mal amadas”, etc, etc. Difícil, Narcisa, colega, difícil. Um Salve à colega que desdisse a palavra do padre em pleno casamento na semana passada e disse que submissa ao marido ela não seria. Bravo!

Sim, de sua época pra cá evoluímos em muita coisa. As mulheres já estudam e podem trabalhar fora de casa, apesar de ganharem salários menores do que o dos homens, de muitas serem demitidas depois de terem filhos e de terem de aguentar a tripla jornada com os filhos e a casa depois que voltam da lida. Mas andamos. A gente já pode votar e até se candidatar, apesar de ainda a política ser algo predominantemente masculina e são eles, pasme!, que ainda decidem sobre os nossos corpos, como ter ou não o direito ao aborto legal. Sim, em pleno século XXI, Narcisa, ainda estamos nessa peleja e ainda tem o papa e “suas igrejas” – apesar de esse da católica ser bem legal – que proíbe as mulheres de deliberarem sobre seus corpos. Sim, pode acreditar, religião ainda manda no mundo e principalmente nas mulheres. Se olharmos para as nossas irmãs mulçumanas, coitadas, recentemente estão recebendo avalanches de machismos, uma coisa absurda. Fora a burca que eu nem vou comentar.

Ser mulher no mundo é como ser negra, ou negro. Pior sofrimento carrega a mulher negra. É uma condição, uma condição de inferioridade, uma condição que pra sempre vai marcar e determinar até onde nós mulheres podemos ir, qual o nosso lugar e o nosso papel. Se tentarmos fugir disso, sofreremos as consequências.

Mas, Narcisa, eu penso como você. Pior do que as consequências por tentarmos mudar essa condição, é aceitar essa condição. E somos muitas que não aceitamos. Umas mais corajosas como você, que recebem as primeiras pedradas, outras menos, feito eu, que escrevo, me posiciono e também levo algumas pedradas, mas menos. Veja a Marielle Franco, levou tiros de tão corajosa que foi. Têm aquelas que observam, sabe que alguma coisa não está muito boa, mas preferem calar-se, essas também são muito importantes na luta, pois, se não estão no fronte, não vão nos enfraquecer na retaguarda. E tem as que, coitadas, são tão vítimas que apoiam o que as oprime. Veem o mundo de uma ótica tão machista que defendem seus conceitos, elegem seus algozes e sofrem sem já nem mais saberem por quê. Por elas, Narcisa, e por nós, a gente continua lutando, enfrentando, ora mais mansas, ora aos berros, sem já nos importarmos mais se nos chamarão de histéricas.

Sejamos, portanto, as mulheres inteligentes a quem Narcisa Amália nos deixou um recado em 1889:

“Eu diria à mulher inteligente […] molha a pena no sangue do teu coração e insufla nas tuas criações a alma enamorada que te anima […] (assim) deixarás como vestígio ressonância em todos os séculos”.

Pois deste século – retrógrado – eu te escuto e torço pra que sempre sejamos vozes de acolhimento e força. Obrigada, Narcisa.

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