O meu corpo dos outros

Como moro pertíssimo da praia, resolvi, no sábado, descer com o sutiã do biquíni à mostra e apenas botei um short em cima da calcinha do biquíni. Pensei: “moro tão perto, não há de me acontecer nada”.

Ponto um sobre a dificuldade de transitar um corpo com peitos e curvas pelas ruas brasileiras: ao sair de casa, a gente pensa na roupa que vai usar e por onde vai passar com medo de ser estuprada. É simples assim.

Seguindo com minha ida até a praia, comecei a descer a ladeira meio confiante, até passar em frente a uma obra e me lembrar de um relatório policial que li há anos ensinando as mulheres a evitarem o estupro. Um dos itens era justamente o de não passar perto de obras. Gente, era surreal. O relatório dizia também para não usar “rabos de cavalo” no cabelo, pois fica fácil de o homem puxar, bem como, não andar por dentro de estacionamentos, pois lá também é campo minado.

Pensando aqui que o mesmo relatório deveria estar dentro das obras e dos estacionamentos dizendo simplesmente: “Não estuprem as mulheres e nunca puxem uma mulher pelos cabelos, mesmo que ela esteja com ele preso”.

Mas voltando à minha ida ao mar, depois do primeiro alerta, segui e percebi os olhares de policiais – eles são os que me dão mais medo, pois se a instância máxima ali é agressora, a gente está nas mãos de quem??? Percebi o olhar do policial, do mendigo, do transeunte e aqui eu não estou me vangloriando de ser gostosa e por isso atrair olhares, eu estou é com medo mesmo.

Voltei pra casa com uma sensação pesada de que os meus seios não eram meus, mas dos olhares de cobiça e que, a qualquer momento, poderiam estar à disposição violenta de alguém. É estranho, mas, por um instante, me senti carregando algo que não deveria estar comigo, no caso, eu não deveria estar “mostrando”. Como se aquele corpo que estava ali não me dissesse respeito e nem direito, mas que eu era uma intrusa nele, pois o meu corpo de mulher pertence ao olhar e ao desejo dos homens.

O que ainda me deixa mais triste é que, ainda que tenhamos tido Simone de Beauvoir, as “sufragistas” lá no final do século XIX, ainda que tenhamos a Judith Butler, a Djamila Ribeiro, a Anitta, ainda que tenhamos os movimentos feministas no Brasil, na Argentina e no mundo, ainda que galguemos muitas vitórias, a luta é muito dura porque a luta não é apenas contra os homens, mas contra o nosso próprio pensamento machista. Eu tenho e você também tem, não há como escapar.

Nossa cruel preocupação com a juventude, com a magreza, com a beleza já é uma sequela de como nós mulheres também entendemos que nossos corpos são feitos para servir aos olhares dos outros – do homens – e isso já nos escraviza.

Cheguei em casa e comentei com a minha mãe da minha sensação de que meus seios não eram meus, mas emprestados, e ela me fez a primeira pergunta que eu me fiz quando me vesti para a praia: “Mas você não botou uma blusa? Você se arriscou”. E me aconselhou a não tocar nesse tema no texto.

Medo, nós mulheres temos medos, por nós e umas pelas outras, a gente vive com medo e a gente vai ensinando as nossas filhas, netas a “escaparem” dos homens, quando deveríamos estar ensinando aos homens, desde cedo, que o corpo da mulher é de quem??? Da mulher, ora.

O problema é tão ancestral e enraizado que eu falo dele e vejo na minha frente uma montanha imensa como obstáculo até chegarmos a esta obviedade. Vira e mexe ouço cada sentença ainda, de homens até esclarecidos, gente até legal, mas com alguns gestos e falas que nos objetificam tanto…

Mas eu não estou desistindo da luta e, por isso, me junto às vozes de milhões de mulheres neste mundo que, de centelha e centelha, visam criar uma constelação de respeito e bom senso. Somos vaga-lumes, como bem falou o filósofo Didi-Huberman, quando comparou a luta das “minorias” por seus direito com os vaga-lumes, que incansavelmente não param de brilhar, mesmo com as luzes fortes que os ofuscam.

Pois que sigamos atentas, cuidadosas com nossos corpos, já que o caminho é longo e violento, mas que sejamos luz na rua deserta umas para as outras. Que a gente se acolha e saiba identificar nos homens de nosso convívio – suas falas, seus jeitos e, aos poucos, a gente possa ir lhes mostrando um caminho muito legal onde cada um cuida do seu corpo como bem entende, e isso inclui consentir a delícia que é a paquera, o amor, o desejo…

Mas isso é tema pra outra crônica.

Na próxima ida ao mar, vou botar uma blusinha, mas não vou me calar. Jamais.

P.s.: O título desta crônica é inspirado no livro maravilhoso do Zuenir Ventura, “A minha história dos outros”.

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