Ando pela noite do Rio de Janeiro, Ipanema, Zona Sul, mas poderia ser em qualquer outro lugar do Brasil. Um pouco melhor, ou muito pior, estamos submetidos às mesmas violências.
Sigo em busca do restaurante de meu desejo. Dinheiro na conta pra pagar a conta que pode custar a semana de muita gente. Não que seja tanto, mas o que se ganha em média é que não dá nem pro início. Não tem dado nem pra carne, têm-se contentado com o osso.
Aperto o passo e vezenquando me assusto com a minha sombra aumentada pelo guarda-chuva, que toda hora me engana parecendo trazer alguém atrás de mim na mesma velocidade que eu. Essa ameaça constante. Chove, o que torna tudo mais melancólico, mais assustador também.
Sento e tento relaxar. Luz de vela, cerveja gelada, uma comidinha deliciosa – salmão, escolhi – mas me lembro do cara que me pediu um trocado pra comprar um prato de comida. Um drogado, diriam os que se isentam de qualquer empatia, mas isso não diminui a minha culpa, ou o meu sentimento de culpa, pelo menos.
Janto, leio um bom livro – minha companhia em muitos jantares e almoços por aí – tomo minha cervejinha e penso como a vida é boa depois do fim do mundo. Contenho a ansiedade que hoje, com anos de análise, sei de onde vem – de lugar algum – mas busco deixá-la em algum lugar sem que me perturbe.
Pago a conta querendo ficar mais um pouco, porém, o relógio me alerta que já passa das nove. Nove horas não é hora de mulher estar andando sozinha pelo meio da rua. Quem determinou isso? Os homens que se acham no direito de estuprar as mulheres, como se nossos corpos fossem seus.
Aperto o passo e mudo de calçada ao avistar uma família, ou um grupo de pedintes que dorme aqui e ali juntos. Não sei que grau de parentesco tem quem se une na miséria. Deve ser família, isso. Essas pessoas que se aninham em colchões úmidos e lençóis fétidos para não morrerem de frio à noite, ou não sofrerem violência, seja da polícia, seja de um civil, seja de alguém que se acha no direito de atear fogo em mendigos. Sinto medo, pena e um estranho sentimento de dívida com eles.
Sigo e meu medo se deflagra com a encruzilhada da violência no Brasil. Uma mulher – no caso, eu – um negro sem a roupa debaixo, dois policiais o pastorando e um outro homem de pele um pouco mais clara, não sei ao certo. Certamente os policiais ordenaram que ele baixasse as calças. Não sei por que, mas sinto um quê de sadismo nessas abordagens.
Em cinco segundos sou tomada por um filme de mais de quinhentos anos. A humilhação do preto, a desconfiança da polícia, mas, ao mesmo tempo, uma sensação de segurança. Sem saber ao certo se estou do lado certo. O negro me olha, não sei se constrangido, não sei se cúmplice na violência que estamos destinados a sofrer, ele a dele, eu a minha, não olho pra trás, e, na minha cabeça converso com o negro: – Desculpe, mas preciso salvar a minha pele de mulher, a uma hora dessas, eu sou tão vulnerável quanto você.
Estupro, roubo, bala, açoite, humilhação, constrangimento, coerção: MEDO… O pior do Brasil todinho em uma noite no Rio de Janeiro, mas poderia ser em qualquer lugar. Um pouco melhor, ou muito pior, estamos todxs submetidos à toda sorte de violência.