Sobre esse vírus
Por um instante eu queria me esquecer. Por uma manhã que fosse, por três horinhas até, ou pelo tempo de uma ligação no telefone onde você me diz que me ama hoje. Eu também te amo hoje. Aliás, venho te amando e em tempos assim, dizer que ama é mais urgente, ainda que não saibamos se é amor, ainda que a gente nem possa se amar.
Por um momento eu queria tirar as máscaras, perder o medo dessa avalanche que se abateu sobre o mundo, esse terror que é quando a vida imita a arte em sua forma mais cruel. Filme de ficção científica, um Saramago cegando a gente enquanto ensaiamos tentar conter essa tsunami que já levou tantos e que promete nos levar também, ou aos nossos. Fica.
Queria te beijar sem fim, te beijar por horas, agora, e ganhar teu colo depois. Colo livre do que anda assustando, desse vírus que se aproveita da nossa saliva enquanto a gente se beija. Teu colo. Aquele colo que você vem com o braço e me amolda em ti.
Doença ruim que tira de nós o abraço. Já viu isso? Uma doença tão cruel que nos tira o abraço? Ela mata aos poucos e por asfixia. De ar e de afeto.
Lembra daquele dia? Nem faz tanto tempo assim, a gente olhava o mar e doía uma dorzinha de final de dia, uma sensação bonita quando o amor quer chegar e a gente ainda está tentando se organizar por dentro pra encarar tudo o que ele exige? Amor precisa de saúde: pra aguentar a saudade, pra perder a fome, pra sorrir pro nada, pra ter medo de perder, pra escolher ficar, se ele quiser ficar, ou pra escolher partir, se ele quiser ir. Naquele dia a gente não tinha tanto medo, e nem faz muito tempo assim.
Agora eu tenho medo. E todo mundo tem. Medo de ter e de passar, medo até de matar alguém e medo de não ter lugar pra todo mundo que vai ficar doente. Medo desse vírus.
Mas eu queria esquecer, não quero pensar nisso. Não por um instante, por uma horinha que seja, eu não queria saber que o mundo está fechando as portas das lojas, dos teatros, das ruas, dele mesmo. O mundo está se fechando. A Paris que batiza a minha escrita, ela, tão linda, você viu como ela está sem luz? Sem vida? Com medo?
Queria poder entrar com o olhar. Como naquele dia, lembra? Com roupas de frio que chegamos e fomos nos desnudando, deixando cair os muros, as armas, teus olhos me cortaram inteira e, de certa forma, sararam. Amores cortam e saram… Estranho, né?
Vamos ler poesia? Canta uma música pra mim pelo telefone (eu também gosto de Caetano e do Paulo César Pinheiro), passa na minha rua pra eu te ver de longe. Sim, eu te jogo as tranças e você vem aqui e me beija por horas e horas. Vamos viver de fantasias até isso tudo passar?
Vou ler pra você um trecho de Drummond, pera, deixa eu achar um aqui que li no livro de Silviano. Achei.
“Do lado esquerdo carrego meus mortos
Por isso caminho um pouco de banda”
É tão bonito, né? Porque bonito é mais do que lindo porque a palavra “bonito” é mais sonora e parece abraçar mais do que “lindo” que é muito ispilicute, o lindo tá sempre fugindo, com pressa, não se demora como o que é bonito. E a gente precisa desse abraço demorado nem que seja pelas palavras, por enquanto.
É, o poema é meio triste e não devia estar aqui, não nesse momento enquanto eu quero me esquecer. Mas é porque eu já tava até me esquecendo quando eu escrevi, aí me lembrei de novo.
Mas eu queria me esquecer pra voltar a me lembrar das “desimportâncias” da vida, lembrar de conseguir arquivar na alma todo esse sentimento bonito que a gente tenta nomear em nosso “indicionário”, já que as palavras não dão conta de dizer de nós.
Mas por ora eu tô com medo desse vírus.
Mas estou contigo.
Me espera?