O voto do ódio

ódio

Dois e dois: quatro

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena (GULLAR)

Ontem, baqueada depois da apuração, como quem estava distraída e, de repente, passa por mim um furacão levando certezas, levando esperanças, sonhos e projetos… Tonta, pedi pra ele ler poesias pra mim, porque me encantam e me acalmam.

Ele me trouxe essa de Gullar, que falou do pão caro e da liberdade pequena.

Depois de ontem, depois dos números de ontem, ficou fácil analisar o que aconteceu. Vidente de notícia passada é mais fácil, claro. Soubemos que o voto útil migrou do Ciro pro Bolsonaro e que “indecisos” ou envergonhados, na hora H, foram na extrema direita, no conservadorismo.

Contudo, o que de mais difícil fica, e, portanto, o mais urgente, é entender o movimento do ódio na política, afeto este que talvez seja o que mais soma votos para um candidato.

A ideia de um Brasil conciliador é uma falácia contada pra gente nas novelas da Globo e reproduzidas por nós sob a égide do país do sol, da praia e do carnaval, onde todo mundo é feliz, tendo muito ou tendo pouco, onde todas as raças convivem juntas e harmonicamente, onde a empregada da casa é “quase da família”, onde somos todos miscigenados e não há diferença de raça.

Sim, isso tudo é uma falsa ilusão empacotada pra vender pacote turístico e para, o que é pior, ir mantendo as pessoas desprivilegiadas em seus “devidos lugares” e, quem oprime, oprimindo cada vez mais.

Acontece que, de uns anos atrás até bem poucos, essa gente oprimida no mundo inteiro, falo dos homossexuais, dos transsexuais, dos negros, das mulheres e de nossas lutas pelo controle pleno dos nossos corpos, as demais religiões fora a católica, todas essas identidades passaram a ganhar espaço e tudo isso foi gerando uma mudança nas peças do tabuleiro. Um mexer de placas tectônicas sociais e, a medida em que íamos ganhando espaço, sem saber, fomos cultivando um ódio em boa parte da população que se sentia ameaçada com tantos avanços.

Sim, o pão é caro e a liberdade é pequena. Ou vice-versa, Gullar. A liberdade é cara e o pão que se tem pra repartir só cai na boca de pouca gente. Talvez não por ser pequeno, mas por ganância mesmo.

E é o ódio, este ódio a tudo o que avançou, desde as outras famílias que se formaram, até a negros entrarem em universidades, passando por mulheres com autonomia financeira e emocional para não dependerem de ninguém, é o ódio a tudo isso que está definindo as eleições e a gente da esquerda fica tentando falar em propostas para a educação e erradicação da fome no Brasil. Nada disso importa para muita gente, porque muita dessa gente nem é impactada por isso, ou, se é, se sente mais ameaçada por um homossexual do que pela miséria. Vai entender!

Então, quando o candidato Bolsonaro fala em Deus, Pátria, Família e Liberdade, ele empacota num presente só um Deus único, o cristão, que tira de cena toda a “ameaça” das religiosidades de matrizes africanas, portanto, negras. Veja bem, num golpe só, saem o que eles chamam de macumba e, com ela, bota fora do cenário os negros, fomentando aquela revoltazinha silenciada por tanto tempo, de que preto tem que ficar é “no lugar dele”, isto é, em lugar nenhum a não ser em cargos subalternos, desde a escravidão até para sempre.

Quando ele fala em pátria, ele define como patriota apenas os que comungam de seus pensamentos e ele conseguiu um feito cabal para isso, apoderou-se da bandeira do Brasil para si. Então, quem não veste verde e amarelo não é patriota. Veja aí o ciclo de retroalimentação: O Brasil para os brasileiros, mas apenas alguns brasileiros, os “de bem”. Logo, eu, que não comungo com suas ideias, sou “do mal”.

Quando ele fala em família, ele está excluindo os homossexuais e toda a sorte de família que não cumpra os critérios: papai, mamãe e filhinhos. Seu ministro disse, inclusive, que uma criança criada pela avó tende a não ser tão estruturada. Quero ver como vão fazer com os milhões de órfãos pela pandemia, da qual o Bolsonaro desdenhou, debochou e foi o grande responsável por essa mortandade que tivemos.

Por fim, ele embala com o conceito de que toda essa exclusão é que trará a liberdade, isto é, uma liberdade asséptica, onde nada que não seja branco, cristão, e rico possa fazer parte.

Portanto, o voto no Bolsonaro, dá-se assim: Deus – só um, o cristão. Pátria – apenas para seus seguidores, uma parcela branca e rica do Brasil. Família – somente um formato dela. Liberdade – para ser somente o que o Bolsonaro permite que se seja.

Aí você, depois de ler tudo isso, se pergunta: por que raios as pessoas votam numa pessoa bélica dessas? Que usa o nome de Deus pra defender o racismo, a homofobia, a intolerância religiosa?

E eu tristemente te respondo, porque muitos de nós carrega em si algum, ou alguns, desses ódios que o Bolsonaro aglutina. E, ao encontrarem um líder que fale abertamente o que até bem pouco se tinha vergonha de dizer, isso é libertador para essas pessoas. O voto no Bolsonaro é um voto fomentado pelo ódio que pessoas têm de outras pessoas que se comportam de outra forma, que não a “padrão”.

Por isso, se faz urgente olhar pra essa grande ferida purulenta que é o preconceito no Brasil e as consequências odiosas que ele causa dentro das pessoas e, consequentemente, na sociedade.

Que no dia 30, a gente possa ter a chance de discutir sobre o ódio livremente nos próximos anos, sem censura, sem ditadura.

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